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  • Se não se amarrar, não vende!

    Tocar ou cantar em grupo é uma tarefa desafiadora, pois, além de interpretar o repertório, executando-o no tempo, afinado e com técnica, é preciso observar o outro, interagindo, ao mesmo tempo, de forma autônoma e interdependente. Para ler o que há por trás de cada olhar e movimento, um grupo necessita ensaiar de forma consistente por um período considerável de tempo. Muitas vezes, as informações são sutis e passadas discretamente, suprimindo toda e qualquer necessidade de verbalização. Mas esse conhecimento só brota com a intimidade, que, por sua vez, é fruto de uma convivência saudável e pautada no respeito e na confiança. Como regentes, desenvolvemos um cabedal de gestos com o qual nossos coros, bandas e orquestras se familiarizam. Muito embora pretensamente universais, eles carregam elementos idiossincráticos, com os quais chamamos a atenção para pontos específicos, dentre os quais a sonoridade, o fraseado, a precisão rítmica, os formatos das vogais, as passagens mais complexas. O olhar fixo nas mãos, o vai-e-vem do tronco e a forma como nos dirigimos para um determinado naipe falam sobre as verdades construídas ao longo de várias horas de ensaio. Quanto mais conseguimos ler as entrelinhas, captando, assim, o não-dito, mais diligente e carregada de sentido será a nossa performance. Quando há correspondência mútua, aí, então, a fruição estética se torna mais intensa, atingindo também o público, que reage proporcionalmente ao grau de envolvimento e cumplicidade que demonstramos no palco. No documentário Sob o Céu de Zabé (veja o vídeo), produzido por Márcia Paraíso, em 2014, e que trata da vida e obra de Isabel Marques da Silva (1924-2017), mais conhecida como Zabé da Loca, uma passagem chama a atenção. Pitó, que integrava o terno-de-zabumba dessa famosa agricultora-musicista que viveu no Cariri Oriental paraibano, dá um depoimento singular, no qual descreve suas experiências e diz que “a música é uma entremelagem de juntamento.” Analisando a sua fala, nota-se que ao usar o vocábulo entremelagem, provavelmente uma corruptela do verbo francês entrêmeler, ele reitera o sentido de entrelaçamento que as práticas de conjunto, tanto instrumentais quanto vocais, evocam, convidando-nos também a refletir sobre a complexa relação que se estabelece entre o indivíduo e o grupo nestas e em outras instâncias do saber/fazer musical. O emblemático discurso do percussionista revela a força da construção coletiva e reforça a crença de que para tocar e cantar com outras pessoas é preciso observar muito mais que as frequências, as durações e suas respectivas articulações e variações de intensidade. Sem diálogo e interação não há conjunto. Por isso, Pitó, de forma sábia e graciosa, é enfático ao comparar um grupo musical a um lerão de coentro dentro de um balaio num dia de feira. Nos dois contextos, “se não se amarrar, não vende!” Vladimir Silva

  • Música para a Quaresma

    A Quaresma é o período que vai da Quarta-Feira de Cinzas até a Páscoa. Para a Igreja Católica, esse é um momento de conversão, meditação e penitência, motivo pelo qual a liturgia adquire conotações específicas, conforme descrito nos documentos eclesiásticos. O roxo é predominante nos altares e paramentos sacerdotais. Dentre os itens proibidos nas celebrações ao longo desse período estão as orações e cânticos de louvor, como, por exemplo, o Gloria e o Aleluia, as flores no altar e o uso do órgão, que só é permitido nos domingos e férias para acompanhar o canto. A literatura coral escrita para a Quaresma e para o Tríduo Pascal, que congrega as celebrações da Quinta-Feira (In Coena Domini), Sexta-feira (In Passione Et Morte Domini) e Sábado Santo (Sabbato Sancto), é muito ampla. Essa música, seja para coro a cappella ou acompanhado, pode ser inserida em diferentes contextos litúrgicos e/ou paralitúrgicos. Ela é rica em simbolismo musical, visto que os compositores captam a essência dos textos, representando os diferentes afetos e estados emocionais que eles suscitam. Esta retórica musical pode ser percebida numa simples antífona monofônica medieval, como, por exemplo, Ubi caritas, quanto nos complexos motetos de Poulenc (Timor et tremor, Vinea mea electa, Tenebrae factae sunt e Tristis est anima mea). No Brasil, a produção de música sacra foi muito intensa durante o período Colonial-Imperial. Padre José Maurício Nunes Garcia compôs, entre 1798 e 1809, um conjunto de peças para as diferentes liturgias da Semana Santa, a maioria delas para coro misto a cappella, que foram editadas e publicadas por Cleofe Person de Matos, em 1976, no Rio de Janeiro, muitas das quais já tive a oportunidade de interpretar, a exemplo dos motetos Sepulto Domino e Domine, tu mihi lavas pedes. O Projeto Acervo da Música Brasileira – Restauração e Difusão de Partituras, do Museu da Música de Mariana, tem se dedicado à restauração, edição e publicação de obras religiosas dos séculos XVII a XX, dentre as quais aquelas escritas por Emerico Lobo de Mesquita, João de Deus Castro Lobo, Manuel Dias Oliveira, dentre outros nomes. As pesquisas já deram origem a vários livros e gravações, a exemplo da coleção Matinas de Quinta-Feira Santa, do compositor mineiro Jerônimo de Souza Queiróz, interpretada pelo Conjunto Calíope e Orquestra Santa Tereza, sob a direção de Júlio Moretzsohn. A Quaresma está começando hoje. Que ao longo deste período, e independentemente da fé que professamos, possamos cantar esta literatura que é patrimônio da humanidade, ampliando o repertório dos nossos coros e enriquecendo, com beleza e lirismo, os diversos momentos da história da paixão, morte e ressurreição de Cristo. Vladimir Silva

  • Música e carnaval

    Carnaval é sinônimo de liberdade e alegria. É a festa do deboche e do sarcasmo na qual os brincantes, por meio da arte, questionam e desmistificam o discurso da autoridade e do poder, abordando a vida cotidiana com muito humor, ironia e irreverência. Na Itália seiscentista, a expressão canti carnascialeschi designava as canções polifônicas cantadas no carnaval florentino por intérpretes mascarados, que, segundo o Dicionário Harvard de Música, andavam a pé ou fantasiados em carros decorados. Os textos das composições, na sua grande maioria anônimos, celebravam as artes e o comércio da região, assim como tratavam de temas alegóricos e moralistas. Os poemas eram estróficos, apresentando geralmente versos octossílabos. Como as composições eram interpretadas em espaços abertos, nas ruas e praças, e a compreensão do texto era condição essencial para a instauração do riso, os compositores recorriam às formas homofônicas e silábicas, daí a predileção pela frottola, a canzona a ballo, a villanella e a mascherata. As canções obscenas e com duplo sentido também integravam o repertório carnavalesco renascentista, como sugere o título Canti della malmaritata, delle donne giovani e di mariti vecchi, delle vedove, dei giudei battezzati (Canções das esposas infelizes, das esposas jovens casadas com homens velhos, das viúvas, dos judeus batizados) e os versos de Canti di lanzi tamburini, cuja tradução apresentamos a seguir: “Lanzi percussionistas nós somos, / vindos da Alemanha / para tocar bombo e flautas / onde há guerra e bons vinhos. / Nós temos flautas grossas, / longas e bem decoradas; / Belas senhoritas, nós podemos mostrá-las, / todas tocam suavemente, / e são boas na frente e atrás, / no começo e até o fim... / E se vocês também, adoráveis senhoritas, / desejam aprender como tocá-las, / nós estamos alojados na Piazza Padella, / no lado oposto aos banhos quentes, / onde, costumeiramente, / oferece-se prazer aos florentinos”. A temática sexual foi explorada por outros compositores italianos e franceses, dentre os quais Clément Janequin, que escreveu várias canções baseadas nos poemas satíricos e eróticos de Clément Marot, todas com forte apelo burlesco. Carnaval é ruptura e inversão, e a música há muito tempo tem sido usada para dessacralizar os discursos oficiais. Como José Luiz Fiorin observa, no livro Introdução ao pensamento de Bakhtin, o carnaval não é uma festa que se presencia, mas que se vive. Para ele, “o carnaval é constitutivamente dialógico, pois mostra duas vidas separadas temporalmente: uma é a oficial, monoliticamente séria e triste, submetida a uma ordem hierarquicamente rígida, penetrada de dogmatismo, temor, veneração e piedade; outra, a da praça pública, livre, repleta de riso ambivalente, de sacrilégios, de profanações, de aviltamentos, de inconveniências, de contatos familiares com tudo e com todos”. Vladimir Silva

  • Selecionando o repertório coral

    Quando estou selecionando repertório para meus grupos, costumo trabalhar muitos dias nessa tarefa. Geralmente, organizo as obras que pretendo interpretar a curto, médio e longo prazo em três categorias: na primeira, incluo as composições mais simples, que podem ser incorporadas ao dia-a-dia do conjunto rapidamente; na segunda, aquelas que exigem elevado nível técnico e cuja preparação demanda mais tempo; na terceira, as masterpieces, obras que necessitam de muitos recursos humanos e financeiros para serem executadas e que não dependem exclusivamente da minha iniciativa. Além desses critérios, analiso o potencial das peças e vejo se elas contemplam múltiplas dimensões do fazer musical. Prefiro trabalhar com literatura original, escrita por diferentes autores(as) e em períodos distintos, seja para coro, banda ou orquestra. Eventualmente, para variar e de acordo com as necessidades, insiro arranjos, versões e adaptações. Faço isso porque, no caso específico do canto coral, percebo que muitos colegas têm priorizado um repertório de qualidade duvidosa, com forte apelo midiático, deixando de lado obras de referência, alegando os mais variados argumentos, muitos dos quais infundados. Combino o velho e o novo, o local e o regional, os(as) compositores(as) consagrados(as) e aqueles(as) em ascensão, cuja produção, além de tecnicamente adequada e acessível, seja igualmente expressiva e bela. Às vezes, exploro um(a) autor(a), uma época, um estilo, um tema, o repertório a cappella; outras, música com solistas, coro e acompanhamento instrumental. Sempre busco a variedade de andamentos, tons, articulações, dinâmicas, textos, texturas e caráteres. É preciso paciência para garimpar e organizar esse quebra-cabeças, pois quando o repertório não é selecionado criteriosamente é possível que haja desânimo, que os ensaios se tornem morosos, que o desgaste entre regente e músicos se acentue, que a experiência musical não seja afetiva, lúdica. A plateia também reage diante de escolhas inconsistentes, equivocadas, bocejando, mexendo-se nas poltronas, desejando, ansiosamente, o fim do concerto. Selecionar o repertório da temporada é uma ação que requer calma, posto que a pressa é inimiga da perfeição, e muita racionalidade, visto que a emoção não é sábia conselheira. Antes de tomar uma decisão, esboço várias possibilidades, equilibro os princípios que norteiam a minha práxis artística e pedagógica com as necessidades e as expectativas daqueles com os quais irei conviver e trabalhar. Tento resistir, na medida do possível, às pressões extrínsecas, muitas das quais podem ser motivadas pelo modismo, pelas imposições do mercado, pelas exigências dos chefes imediatos, pelos caprichos dos mecenas, pela opinião dos impertinentes. Todo ano, nessa época, meu desafio – e o de muitos regentes – é sempre o mesmo: organizar o repertório sem perder de vista o ideal, sem abrir mão da excelência, sem excluir a possibilidade de mudança ao longo do percurso. Vladimir Silva

  • A primeira lapingochada é minha

    Um dos maiores mananciais para a pesquisa da música de double entendre é indiscutivelmente o Renascimento. São inúmeros os exemplos desse tipo de repertório na literatura vocal do século dezesseis. O uso das onomatopeias e o emprego de refrãos compostos por sílabas neutras, dentre as quais fa-la-las e suas variantes, reforçam o perfil dúbio dos textos que muitas canções seculares evocam, ratificando aquilo que Bakhtin já preconizara, isto é, que a carnavalização é uma forma de contradiscurso, que provoca o riso e a reflexão de quem os enuncia/escuta. Um villancico que ilustra bem esse processo é Dale si le das, moçuela de Carasa. Em todos os versos há sempre uma dúvida semântica que se estabelece pelo uso de trocadilhos: Otra mozuela, Teresica, mostrado me ha su cri[ca]... atura que llevaba bien criada (Outra jovem, Teresica, mostrou-me seu bichinho bem cuidado). A fermata sobre a sílaba cri, no substantivo criatura, seguida por breve pausa, sugere que a rima para Teresica seria crica, um dos sinônimos para a genitália feminina, na língua espanhola. Como ratifica Fiorin, a linguagem carnavalesca “é repleta de sarcasmos e insultos. No entanto, esses xingamentos e zombarias não têm caráter ofensivo, mas brincalhão.” No renascimento italiano e francês isso ocorre frequentemente, basta analisar alguns madrigais ou as chansons de Clement Janequin. A música popular brasileira, sobretudo aquela produzida aqui no Nordeste, explora essa temática de modo muito particular. O chamado forró de duplo sentido mantém-se vivo, intrigando-nos e ao mesmo tempo alegrando-nos com suas ironias e ambiguidades. Clemilda, Zenilton, João Gonçalves e Genival Lacerda, dentre outros(as), gravaram sucessos que ainda hoje nos fazem sorrir, pensar e dançar. Zé da Onça, uma pérola de João do Vale, Abdias Filho e Adrian Caleiras, trilha do filme Rico ri à toa, dirigido pelo cineasta Roberto Farias, produção da Brasil Vita Filmes, é uma crônica de costumes que aborda questões éticas e amorosas com leveza e escárnio. Nos versos da canção, uma mulher conversa com um homem, dizendo-lhe que o seu esposo está prestes a morrer. Comenta que, ao lado dele, a vida não é das melhores e que isso deverá piorar após a sua partida. Predador, como todo felino, e carregado de segundas intenções, Zé da Onça diz-lhe que, caso fique viúva e decida contrair matrimônio mais uma vez, ela deveria dar-lhe a preferência, pois os dois dão certo e combinam “tal qual a boca de um bode.” O jogo dialógico do casal é permeado por ambivalências que são potencializadas até o final da narrativa, quando Sá Chiquinha, de forma ingênua e maliciosa, pergunta: “Se eu quiser me casar de novo, Zé, o que é que há?” E ele, quase descrente, mas eufórico, responde: “A primeira lapingochada é minha!” Vladimir Silva

  • Janequin e Marot

    A relação entre música e texto sempre teve um papel fundamental dentro do processo criativo. Os compositores seiscentistas exploraram os aspectos expressivos e a potencialidade do poema para representar e suscitar emoções e sentimentos. Tais princípios foram aplicados a diversas formas de composição, incluindo a chanson. A obra de Clément Janequin (1485-1558) é extensa e ele escreveu música sacra e secular, rica em onomatopeias e simbolismo musical. Em canções como La guerre, Le chant des oyseaux, Le cris de Paris, Le caquet des femmes e La chasse, por exemplo, ele emprega figuras retóricas como a hypotypose, que potencializa a descrição poético-musical. Clément Marot (1496-1544), por sua vez, debocha da tradição, das práticas sexuais, das mulheres e dos homens traídos usando formas fixas, rondós, epigramas e blasons, forma na qual o poeta foca em um detalhe anatômico do corpo feminino e desenvolve seu elogio com um meticuloso jogo de palavras. Estudos indicam que ele teve mais de trezentos versos musicados por cinquenta compositores diferentes, dentre os quais Clément Janequin. Da parceria entre Janequin e Marot nasceram obras singulares da literatura coral, tais como L’espoux a la première nuict, Martin menoit son porceau, Du beau tétin e Ung jour Robin, todas com forte apelo erótico. É interessante notar como a poesia narrativa contribuiu para a definição da canção polifônico-descritiva seiscentista e, mais particularmente, para a definição do estilo de Janequin. Em Martin menoit son porceau, por exemplo, o perfil melódico-rítmico, os contrastes na textura, a mudança tímbrica e as passagens declamatórias estão diretamente associadas ao texto, pontuando a fala das personagens, realçando aspectos semânticos importantes. O poema, com tradução de Eustáquio Rangel, apresenta-se assim: “Martin levava seu porco ao mercado com Alix, que lhe suplicava a plenos pulmões para que ele a possuísse. Estavam um sobre o outro, e Martin perguntou-lhe: ‘Mas quem ficará com nosso porco? – Quem?, perguntou Alix. Há uma solução!’ Enquanto o porco estava com as pernas amarradas, Martin abriu ostentosamente a braguilha. O porco assustou-se, e Alix gritou: ‘Fecha, Martin, nosso porco está me puxando!” Para perceber os diferentes sentidos do texto, ouça a interpretação do Ensemble Clement Janequin. Janequin é considerado por muitos historiadores o grande nome da chanson parisienne. Sua música secular é satírica, erótica, carnavalesca, marcada pelo riso, que, como aponta José Luiz Fiorin, “dessacraliza e relativiza as coisas sérias, as verdades estabelecidas, e que é dirigido aos poderosos, ao que é considerado superior.” Janequin contribuiu para o estabelecimento de uma nova práxis composicional, optando pelo experimentalismo, pela construção de novas formas, pela instauração de um novo discurso. A (re) inserção destas obras emblemáticas em nossos repertórios exigirá dos intérpretes, além do apurado domínio técnico, musical e vocal, uma escuta mais atenta à filosofia geral do Humanismo e da vida. Vladimir Silva

  • Livros de solfejo: Melodia

    Melodia: A Compreenhesive Course in Sight-Singing, organizado por Samuel W. Cole e Leo R. Lewis, foi publicado nos Estados Unidos no início do século XX. O livro, cujo título em português é Melodia: um curso completo para leitura à primeira vista e que pode ser adquirido gratuitamente aqui, está dividido em quatro partes, apresentando exercícios mono e polifônicos, diatônicos e cromáticos, em diferentes tons, modos e métricas. As atividades apresentam graus de dificuldade crescente. Boa parte daquelas que estão em uníssono foram também escritas na clave de fá, permitindo que todas as vozes se familiarizarem com a leitura em múltiplas claves. As que são a duas partes podem ser cantadas por vozes iguais ou mistas, em pares e também de maneira invertida, isto é, sopranos e contraltos cantam a voz inferior e vice versa. Esses duetos funcionam igualmente nas aulas individuais de canto. Alguns exemplos foram extraídos da literatura musical produzida entre o Renascimento e o período Romântico, o que quer dizer que estamos lidando com repertório. A inexistência de indicação de fraseado e variação de dinâmica, por exemplo, é um convite para que os intérpretes explorem distintos aspectos da estrutura musical em questão. O objetivo dos autores é preparar os (as) cantores (as) para que eles/elas possam interpretar a vasta literatura coral disponível no mercado da melhor forma possível, o que contempla cantar no tempo, afinado, com técnica e expressivamente. Há quem refute as proposições de Cole e Lewis por considerá-las antiquadas, porque são eurocêntricas ou porque elas não estão vinculadas ao nosso contexto cultural, argumentos válidos, em certa medida, mas que não tiram o mérito da obra. Eu gosto da proposta e a utilizo em diversas situações, ciente das suas limitações e possibilidades. Como sou adepto da relativização, leio os exercícios nesse prisma, embora tenha consciência de que o compêndio fora concebido sob a perspectiva do solfejo fixo. Faço isso porque sei que nenhum método, per si, assegura o desenvolvimento de qualquer habilidade. É a maneira como nós o utilizamos, a relação que estabelecemos com ele, que nos leva a atingir resultados mais ou menos eficazes. Dedicar parte do ensaio para o aprimoramento da leitura à primeira vista é um investimento válido para incrementar a performance de um grupo, razão pela qual essa prática pedagógica, seja por meio do sistema Dó-Fixo, Dó-Móvel ou em conexão com o repertório, precisa estar presente em nossa agenda. Minha recomendação é adotar as metodologias com as quais nos identificamos e conhecemos. De resto, eu acredito que, assim como uma obra não pode ser estigmatizada por conta da sua idade e procedência, não nos cabe condenar quem ainda acredita no solfejo como um dos caminhos para o fortalecimento da autonomia dos (as) nossos (as) coralistas. Vladimir Silva Leia mais: O ensino do solfejo Dó móvel ou dó fixo?

  • Jovens tardes de domingo

    Fim de semana, na minha infância, era sinônimo de muita música. Todos os sábados, eu e meus amigos passávamos a tarde tocando flauta e violão. Empolgados, não sentíamos o tempo passar e só quando ouvíamos o badalar do sino da Capela João Moura, avisando que a missa das cinco estava para começar, que decidíamos parar. Eu saia às pressas, correndo ao encontro da minha tia-avó, Maria Ferreira, para juntos seguirmos até a igreja. Durante a celebração, esperava com certa ansiedade a hora dos cânticos, que eram anunciados nos primeiros acordes do pequeno e nasalado harmônio, um órgão de fole que Irmã Aldete, a madre superiora, dominava com maestria. Maria se orgulhava quando me (ou)via cantando com empolgação. No domingo pela manhã, eu sempre acordava cedo para ouvir a Campina FM e o programa Clássicos Eternos, apresentado por Hilton Mota. A temática era variada, o que me permitia conhecer gradualmente a literatura musical de diferentes períodos, autores e estilos, o que só aumentava o meu interesse pela música. Eu nem imaginava que, anos mais tarde, seria o produtor e apresentador desse mesmo programa. Em casa, após o almoço, nos divertíamos, eu e a minha irmã mais velha, com o programa Qual é a música?, no qual Sílvio Santos desafiava os participantes com uma gincana musical. Meu pai também gostava desse jogo. Contudo, preferia ouvir suas músicas, especialmente depois que adquiriu um “três-em-um”, o aparelho de som mais moderno da época e no qual era possível ler e gravar fitas cassete, sintonizar rádio AM e FM e escutar discos de vinil. Comumente, ele colocava na bandeja Gal Tropical, Ave de Prata, o primeiro trabalho que Elba Ramalho gravou, e a Arte de Chico Buarque, que ouvíamos deitados no chão duro, frio e de cimento avermelhado, porém aconchegante, da sala da nossa casa. Curiosamente, meu irmão caçula gostava de ouvir Chico Buarque cantando Minha história (Gesubambino) e falando da pobre mulher que, por não se lembrar de acalantos, ninava o filho pequeno com cantigas de cabaré. E ele sorria e pedia para meu pai repetir várias vezes aquele laiá, laiá. Anos depois, já no início da adolescência, no fim da tarde, quando no alto da Rua das Imbiras os portões da AABB se abriam, avisando que a matinê estava encerrando, corríamos para aproveitar o que restava da festa. Enquanto meus amigos se dirigiam para o salão, eu me apressava para ficar na lateral do palco, vendo e ouvindo os artistas, grupos que (en)cantavam, como, por exemplo, os Vikings, Som Livre, Ogírio Cavalcante e Trepidants. Hoje é domingo e, ao ouvir a canção de Roberto Carlos na voz de Gal Costa, com saudade lembrei-me daquelas jovens tardes, tantas alegrias, velhos tempos, belos dias. Vladimir Silva

  • Festival Nordestino de Corais

    O terceiro Festival Nordestino de Corais, uma promoção da Fundação Artístico-Cultural Manuel Bandeira, aconteceu no Teatro Municipal Severino Cabral, em Campina Grande-PB, nos dia 2 e 3 de agosto de 1986. O evento, que congregou participantes de sete estados das regiões norte e nordeste, foi coordenado por Antônio Sérgio Telles das Chagas, que na ocasião apresentou-se com o Coral Cecília Meireles (FACMADRIGAL) e o Grupo Vocal Céu da Boca. Da Serra da Borborema participaram outros quatro coros, sendo dois preparados por José Cavalcanti da Silva, o Coral Severino Lopez Loureiro e o Antônio Guimarães; o Coro em Canto, vinculado à UFPB, Campus II, sob a regência de Fernando Rangel; e o meu, o Viva Voz, ligado ao Centro Cultural. Foi nesta ocasião que fiz minha estreia como regente. De João Pessoa estiveram presentes o Coral da APCEF, do colega Antônio Carlos Batista Pinto Coelho (Tom K); o Coral Universitário da Paraíba “Gazzi de Sá” e o Grupo Ânima, ambos sob a batuta de Eli-Eri Moura, que também estava a frente do Madrigal da Escola de Música da UFRN. Da Veneza brasileira veio o Coral da CHESF, chefiado por Ramon Pazos Buezas; o Coral dos Empregados da TELPE, liderado por José C. Beltrão Júnior; e o Coral SINPAS, do maestro Laury Bernardes da Silva. O Coral Hermeto Pascoal e o Artium Suprema representaram Alagoas com seus diretores Petrúcio Falcão e Islêne Leite. O maestro Giovanni Pelella chegou com o Coral da Universidade Federal do Maranhão, de São Luís, enquanto Adolfo Oliveira dos Santos trouxe o Coral Vocal, de Belém, no Pará. Da capital sergipana, Aracaju, o SESCORAL, dirigido por José Carlos Tourinho e Silva, e o Coral da UFS, com Antônio Carlos Clech (veja alguns documentos do evento). O repertório era diversificado, incluindo música sacra e secular, original e arranjada, brasileira e internacional, a capela e com acompanhamento. No programa, encontramos Hasler, Dowland, Mozart, Schubert, Saint-Saëns, Osvaldo Lacerda, Waldemar Henrique, José Alberto Kaplan, além de vários arranjadores, incluindo os próprios maestros, Nelson Mathias e José Pedro Boésio, referências da área naquela época. Parte das apresentações está digitalizada e disponível em vídeo (veja aqui). Participei deste encontro e tive a oportunidade de conhecer e selar laços com muita gente. Fico imaginando que toda a produção foi feita por via postal, com correspondências, telegramas, faxes e telefonemas, nem sempre tão acessíveis. Os grupos viajavam de ônibus, sem o conforto e a segurança facilmente encontrados atualmente, ficavam hospedados três ou quatro dias em alojamentos, nas igrejas, no Teatro, nos quarteis. Quando partiam, as promessas do reencontro ecoavam pela estrada sem fim. Era assim que Campina realizava seus Festivais, vibrando em harmonia, com as vozes em festa, celebrando a amizade e a vida. Vladimir Silva Leia mais: O canto coral na Paraíba: Gazzi de Sá O canto coral na Paraíba: Tom K O canto coral na Paraíba: Grupo Anima Um som inconfundível

  • É isso, gente!

    Dezembro. É hora de fazer um balanço e rever o que produzimos esse ano. Tal processo reflexivo nos dá uma visão das nossas ações, sobretudo nos segmentos acadêmico e artístico. Do ponto de vista da produção bibliográfica, publicamos resenhas, capítulos de livros, comunicações e artigos, incluindo os seguintes títulos: 1) Reflexões e estratégias para uma prática coral dialógica e colaborativa; 2) A Missa Sertaneja (1958), de Reginaldo Carvalho; 3) Canto Coletivo e Canto Coral: um estudo sobre a música vocal moçambicana; e 4) Entre o texto, o palco e a tela: uma análise da trilha sonora de Ladrão em noite de chuva, de Reginaldo Carvalho. Também prefaciamos a coletânea Sons de África e da Diáspora Atlântica: História, Musicologia e Interfaces, organizada por Andrea Adour e Josivaldo Pires de Oliveira. O marco foi o lançamento do livro Canções para sorrir e sonhar, com ilustrações de Sabrina Cipriano, ocorrido em julho. Como nos versos da canção Movimentando, que alegria, quanta emoção. Com relação à atividade artística, com o Coro de Câmara apresentamos cinco programas em Campina Grande-PB, João Pessoa-PB, Natal-RN e Porto Alegre-RS. O primeiro deles foi o VI Concerto da Paixão, realizado na quaresma e no qual apresentamos obras de J. S. Bach e de várias compositoras, incluindo Isabella Leonarda, Eva Ugalde, Rosephanye Powell, Elvira Drummond, lza Nogueira e Lorrany Andrade. Depois, interpretamos o Requiem para um Trombone, de Eli-Eri Moura, como parte da programação alusiva aos 10 anos da Orquestra Sinfônica da UFPB e na abertura do XIV Festival Internacional de Música de Campina Grande. No mesmo período, estreamos o Cancioneiro Atlântico, de Danilo Guanais, cantata cênica para solistas, coro misto e consorte formado por flautas, violão, violoncelo e percussão. O Requiem, de W. A. Mozart, integrou a programação do IV Festival Musica Dei e da II Convenção da Nova Associação Brasileira de Regentes de Coros (ABRACO). Em dezembro, o VI Concerto para o Advento, realizado na capital paraibana, encerrando a temporada da OSUFPB, e no Mosteiro Santa Clara, na Serra da Borborema, ocasião na qual estreamos os Cinco quadros Natalinos, de Danilo Guanais. A Coordenação Geral de Arte e Cultura (PROPEX-UFCG), a ABRACO e o Programa de Pós-Graduação em Música da UFPB igualmente nos levaram a realizar e a participar de muitas atividades em todo o país, fato que nos permitiu interagir com um sem-número de estudantes e profissionais. Esse foi um ano intenso, de grandes desafios e de realizações incríveis. Por isso, às vésperas de iniciarmos um novo ciclo, agradecemos o apoio e a parceria das instituições e empresas que estiveram conosco e dos colegas e amigos(as) que também nos acompanharam nessa caminhada. É isso, gente: estamos vivendo a melhor época das nossas vidas, inseridos nesse tempo, povo, lugar! Vladimir Silva

  • A alta performance no canto coral brasileiro

    Nelson Mathias e Célia Bretanha dirigiram o Coral do SESI, em Brasília, nos anos setenta, e gravaram um LP em 16 canais, na RCA, no Rio de Janeiro, com direção artística de Carlos Guarany. O álbum contém nove faixas, todas dedicadas à música brasileira, incluindo Saia bonita (Baião - Carlos Alberto Pinto Fonseca), Suíte dos pescadores (Dorival Caymmi - Damiano Cozzella), Beira mar (Tema afro-brasileiro - Esther Scliar), Rolinha (Chula marajoara - Waldemar Henrique), Cromo (Kindemiro Teixeira - Pedro S. de Amorim - Nivaldo Santiago), Ofulú Lorêrê (Osvaldo Lacerda), Cambinda elefante (Maracatu - Ernst Mahle), Construção (Chico Buarque - Damiano Cozzella) e Carnaval I (Vários autores - Damiano Cozzella). A interpretação do coro é exemplar em muitos aspectos. O grupo canta no tempo, afinado, com técnica e expressão. Destaco tudo isso porque o disco foi gravado em 1975, numa época em que não existiam esses produtos mágicos que muitos usam em estúdio atualmente para afinar ou duplicar vozes. Ali não há maquiagem. A sonoridade desse coro assemelha-se àquela do Coral da UFPB, Campus II, Campina Grande, que os dois também dirigiram entre 1978 e 1982, ratificando que a identidade de um ensemble é definida pelos seus dirigentes. A comparação pode ser observada no texto/vídeo Um som inconfundível. A qualidade dos arranjos é outro ponto que chama a atenção, sobretudo aqueles escritos por Damiano Cozzella e que são interpretados com a orquestração original. Construção e Carnaval I são pérolas, especialmente por conta das madeiras e dos metais. Já a Suíte dos Pescadores inclui um quinteto de cordas, que pouca gente conhece e que toca, a maior parte do tempo, colla voce. Na verdade, pode-se dizer que este acompanhamento é non obbligato, razão pela qual comumente se executa a versão a cappella. Não obstante, compartilharei uma versão completa desse arranjo brevemente para que todos possam conhecê-lo e quem sabe interpretá-lo. Henrique Morelebaum, Marlos Nobre e Alberto Jafé assinam a apresentação desta preciosidade. Este último, inclusive, destaca a prevalência do uníssono e a beleza da homogeneidade, que ultimamente certas linhas de pensamento tentam refutar e considerar démodé equivocadamente e com argumentos dúbios. A unidade é tudo na prática de conjunto, seja num trio de forró, coro ou orquestra. Esses mestres exemplificam o que é excelência, o que é gravar sem Auto-Tune, sem placebos cênicos ou excessiva voz de peito em nome de uma brasilidade ou livre auto-expressão duvidosas. Eles nos mostram que, sim, é possível cantar qualquer repertório com qualidade com um coral formado por gente comum, “50 figurantes, moças e rapazes, filhos dos operários das indústrias e trabalhadores”, como foi o caso do Coral do SESI, da Capital Federal (ouça a playlist). Nelson Mathias e Célia Bretanha, em outros termos, nos ensinam o que é a alta performance no canto coral brasileiro. Vladimir Silva

  • Um som inconfundível

    O maestro Nelson Mathias regeu o Coral da UFPB, Campus II, Campina Grande, entre 1978 e 1982. Formado por cerca de sessenta cantores, o coro ensaiava nas dependências do Núcleo de Extensão Cultural (NEC-UFPB), no Teatro Municipal Severino Cabral, duas horas por dia, de segunda a sexta-feira. A preparação vocal do conjunto estava a cargo da professora Célia Bretanha Junker, cuja ação didático-pedagógica tinha como base os princípios propostos por Madeleine Mansion. A sonoridade era leve e ágil, razão pela qual o grupo dedicou-se à interpretação de várias obras da renascença francesa. As gravações das apresentações do Coral da UFPB, arquivadas em fitas k-7, em diferentes eventos entre 1978 e 1979, reiteram o que estamos falando. Muito embora parcialmente comprometidos pela ação do tempo, nestes áudios é possível identificar vários elementos. A técnica vocal está em processo de consolidação e há equilíbrio e controle da dinâmica e da articulação. Percebe-se o fraseado musical, bem como o diálogo entre os diferentes naipes. Também é notória a precisão rítmica, que ressalta os aspectos percussivos da nossa música popular, assim como as sutilezas e as entrelinhas dos arranjos assinados por Arlindo Teixeira, Clóvis Pereira, Damiano Cozzella e o próprio Nelson Mathias. Célia Bretanha e Nelson Mathias concebiam a música para além dos aspectos técnicos. Para eles, era necessário que os cantores compreendessem poética, filosófica e espiritualmente o que era cantado, a polissemia músico-textual, motivo pelo qual o Coral da UFPB normalmente não se apresentava com partituras, pois, na concepção do seu regente, os cantores deveriam estar livres para ver o maestro e para transmitir com mais liberdade o sentido musical daquilo que se cantava. O Coral da UFPB, sob a direção desses profissionais, foi premiado em festivais, recebeu o reconhecimento do público e da crítica. A proposta, além de artística e educativa, foi também política. Como atestado em alguns dos relatos coletados na pesquisa que realizamos, repetidas vezes o público surpreendeu-se com a atuação do coro. Mesmo sabendo que o grupo era coordenado por dois expoentes nacionais, frequentemente esperava-se do “Coral da Paraíba” um direcionamento técnico e artístico inconsistente, um repertório predominantemente regional e adornado com o placebo cênico, recurso em voga àquela época e que até hoje continua sendo usado, na maioria das vezes, para mascarar incompetências. A admiração era proporcional ao preconceito. Por isso, quando o coral interpretava com maestria a literatura de diferentes países, autores e períodos, o silêncio, o encantamento, a curiosidade e o respeito também preenchiam todos os espaços. Os Cantores da Rainha contrariaram expectativas, desconstruíram estereótipos, romperam barreiras. Para conhecer mais sobre essa página da nossa história, ouça o inconfundível som do Coral da UFPB (vídeo 1 e vídeo 2) e leia a nossa comunicação no XXII Congresso Nacional da ABEM, realizado em Natal-RN, em 2015. Vladimir Silva

  • Por favor, respeitem o artista!

    Estabelecer-se profissionalmente é uma tarefa árdua para o músico. Durante o tempo de estudante, pensei que jamais iria conseguir sobreviver com o meu trabalho, porque quase todas as apresentações que realizava eram gratuitas e muito raramente recebia outro tipo de apoio logístico. Hoje, as coisas são diferentes por conta da experiência e do investimento que fiz ao longo de duros anos estudando. Tenho sido muito seletivo com os convites que recebo e sempre procuro fugir dos empreendimentos sem retorno financeiro. As pessoas devem entender que, à semelhança de qualquer outro profissional, o artista também precisa ser remunerado pelos seus serviços. Para preparar um concerto, um músico, além de adquirir partituras e equipamentos, passa horas estudando e ensaiando em busca da melhor sonoridade e interpretação. Trata-se de um investimento de alto custo. Abomino com veemência aquela conhecida lengalenga de que não se tem dinheiro para pagar os músicos. Também detesto quando me pedem para reduzir o número de intérpretes e o repertório com o objetivo de abater gastos. Ao ouvir esse tipo de sugestão, informo que o trabalho de preparação de uma obra é o mesmo, independentemente da quantidade de pessoas envolvidas. O mais engraçado, entretanto, é que, dificilmente, esses indivíduos agem da mesma forma e com mesquinhez nos escritórios dos advogados, arquitetos, engenheiros, dentistas ou médicos. Geralmente, pagam o que eles pedem porque, em muitos casos, são reféns de tais profissionais, nem sempre tão confiáveis e honestos. Contudo, em matéria de música, a realidade não é bem essa. Sempre que me convidam para realizar concertos e sou informado sobre a indisponibilidade de recursos financeiros, penso antes de responder. Investigo bastante para saber do que se trata. Quando percebo que alguém está querendo se aproveitar do meu trabalho, manifesto a minha indignação e digo que estou ofendido, pois considero um absurdo que tanto os empresários, que faturam alto com os seus negócios, quanto o governo, que arrecada fortunas com os nossos impostos, aleguem falta de recursos para a viabilização de projetos culturais que, em última instância, só servem para promovê-los e projetá-los política e socialmente. Propostas indecentes como estas explicitam a fragilidade das políticas públicas na nossa área, assim como o preconceito e as limitações dos investimentos da iniciativa privada neste setor. Vou além. Elas nos levam a crer que o dinheiro arrecadado pelo setor estatal, que poderia e deveria ser investido em educação, arte e cultura, está, provavelmente, sendo retido, desviado, usado para outros fins, em outras palavras, embolsado indevidamente. Por favor, parem com isso! Respeitem o cidadão. Valorizem os artistas. Vladimir Silva

  • José Alberto Kaplan e a arte engajada

    O dilema entre arte engajada versus arte pura marcou a trajetória do compositor José Alberto Kaplan, sobretudo a partir do final da década de setenta, quando compôs Duas Canções Irreverentes (1978), Trilogia (1980-1982), Ensino Público e Gratuito (1982), Canção da Saída(1984), Burgueses ou meliantes (1984), Duas Canções Natalinas (1984), Natal do Homem Novo (1984) e O Refletor (1988). Além de seus textos, nestas peças ele utiliza versos de Leandro Gomes de Barros, Ferreira Gullar, Ernest Cardenal e Bertold Brecht, todos com forte teor irônico, satírico, crítico e político. Durante o XXVIII Congresso da ANPPOM, eu, José Adriano de Sousa Lima Júnior e Luciênio de Macêdo Teixeira apresentamos uma pesquisa que teve como objetivo analisar a Cantata pra Alagamar no contexto da sua produção, recepção e circulação. Para ler o texto completo, basta acessar os Anais do Congresso. No final dos anos setenta, Kaplan estava interessado em produzir uma música funcional (Gebrauchsmusik), em conexão com as ideias de Kurt Weill e Bertold Brecht. Foi nesse panorama que nasceu a Cantata pra Alagamar, que teve como ponto de partida o conflito latifundiário ocorrido na Fazenda Alagamar, no interior da Paraíba. A Cantata, escrita em 1979 para narrador, jogral, solistas, coro misto e conjunto instrumental, com texto de Waldemar Solha no padrão do martelo agalopado e da gemedeira, tem vinte e três movimentos. Nas palavras do próprio autor, “é um exemplo de arte engajada, que enfrenta os problemas do seu tempo sem perder de vista o horizonte estético.” A instabilidade econômica e política dos anos setenta, no Brasil, afetou diretamente a vida no campo, provocando o êxodo rural. O Proálcool contribuiu para esse quadro, e o conflito de Alagamar se insere neste ambiente, que, de forma polissêmica e polifônica, está presente na Cantata, posto que o seu enunciado demarca a posição dos autores, manifestando, ao mesmo tempo, a relação com o objeto do enunciado e também a relação do compositor e do poeta com os enunciados dos outros. Quando analisada fora desse contexto, elimina-se o conflito dialógico e ideológico que a obra revela, as marcas atenuadas da alternância dos sujeitos falantes que sulcaram o enunciado por dentro, como pontua Bahktin. Relevante para a Estética é o fato de que a Cantata, um exemplo de arte engajada, contém elementos intrínsecos que validam a sua autonomia musical, assegurando a fruição do intérprete-ouvinte-analista. A sua verdade está para além do panfleto motivacional que levou o compositor a escrevê-la. A obra, que exalta a desobediência civil como forma de luta e enfatiza a importância da organização como meio de conseguir a força necessária para enfrentar os poderosos, permanece atual, ocupando lugar de destaque na literatura coral brasileira do século XX, tanto pelo seu conteúdo político-poético quanto pela sua estrutura musical-estética. Vladimir Silva

  • O Canto Coral na Paraíba: Grupo Anima

    O Grupo Anima, criado em meados de 1985 pela flautista cearense Sandra Albano, dedicou-se em sua fase inicial à interpretação do repertório renascentista e barroco para flautas doces. Além da fundadora, integraram as primeiras formações Helena Rodrigues, Eli-Eri Moura, Marisa Nóbrega, Déa Santos, Luciênio Macêdo, Roderick Fonseca, Didier Guigue, dentre outros. Foi com essa proposta que realizou o Circuito de Música Antiga, apresentando-se em várias cidades do interior do estado, em Natal, Fortaleza e Maceió, bem como em Porto Alegre, onde participou do 3º Festival Internacional de Coros. Posteriormente, já em novo formato e sob a direção de Eli-Eri Moura, tive a oportunidade de conhecer o trabalho do consorte em 1986, durante o III Festival Nordestino de Corais, em Campina Grande. Digitalizamos o áudio que foi gravado ao vivo nesta ocasião, em fita K-7, e produzimos uma animação (veja aqui). Na ocasião, apresentaram-se combinando vozes e instrumentos na execução de clássicos extraídos dos cancioneiros ibéricos, muito embora os espetáculos fossem mais complexos, abarcando também números de dança com os bailarinos do Ballet Espaço. A presença do Anima na Serra da Borborema nos fez entrar em contato com uma literatura específica, interpretada com propriedade e que chamou a atenção do público. A seleção e a sequência das peças nos permitiram ouvir canções lentas e rápidas, o diálogo entre solistas e tutti, ressaltando os elementos poéticos essenciais à compreensão da diversidade temática que aqueles textos abarcavam, alguns mais líricos e solenes, outros mais irônicos e com duplo sentido. Foi uma aula inspiradora. Na sua terceira fase, o agrupamento dedicou-se à música brasileira, focando em criações inéditas, como, por exemplo, a Missa Breve, para solista, coro e quarteto de madeiras, e a opereta Os reis simultâneos, ambas frutos da parceira Moura-Solha. Obras seletas da MPB também foram incorporadas ao Anima, que também fez a estreia da Misa Criolla, de Ariel Ramirez, na Paraíba. Em 1989, porque Eli-Eri Moura foi para o Canadá, passei a coordenar a equipe, que recebeu novos integrantes e ampliou o repertório. Participamos de vários eventos, incluindo o 5º Encontro Sergipano de Corais, em Aracaju. Infelizmente, por uma série de razões, nossas atividades foram interrompidas naquele mesmo ano. Contudo, o ciclo da vida, que tudo renova, fez brotar, há poucos anos, o IAMAKÁ, sob a liderança de Eli-Eri Moura, que segue, resguardadas as devidas proporções, a mesma linha da música de câmara produzida pelo Anima, nos anos oitenta. Acompanhar e reger esse conjunto foi relevante para a consolidação da minha carreira musical. À semelhança das iniciativas do professor José Alberto Kaplan e do maestro Carlos Veiga, que também se dedicaram à música antiga com o Collegium Musicum e o Pró-Música, na capital paraibana, o Anima é uma referência na história do canto coral estadual, pela excelência da sua proposta estética, artística e musical. Vladimir Silva

  • O canto coral na Paraíba: Tom K

    Antônio Carlos Batista Pinto Coelho, mais conhecido como Tom K, nasceu em Recife, Pernambuco, mas há muitos anos adotou a capital paraibana como sua terra natal. Graduado em Violão pela Universidade Federal da Paraíba, tornou-se uma referência no mundo musical por sua atuação como compositor e regente. Foi no final dos anos oitenta que tive o prazer de conhecê-lo, quando ingressei no curso de Licenciatura em Educação Artística, com habilitação em Música, no Campus I da UFPB. Tom K lecionava na graduação e foi um dos meus primeiros professores de Regência. Naqueles anos em João Pessoa, tive a oportunidade de acompanhar o trabalho que desenvolvera com o Madrigal Pedro Santos, indiscutivelmente um dos melhores coros que o estado já teve. Depois, por curto período, fui seu assistente no coral da Fundação Musical Isabel Burity. Por conta da minha mudança para Teresina, passamos algum tempo afastados. Esse fato foi revertido quando nos reencontramos em Salvador. Na capital baiana, entre 1996 e 1999, fomos colegas no Mestrado em Música, na classe do professor Erick Vasconcelos. Vivemos intensamente aqueles três anos. Convivíamos diariamente na Escola de Música, no Vale do Canela. Caminhamos juntos, subindo e descendo ladeiras, pesquisando e conversando, às vezes em diferentes bibliotecas e salas, quase sempre no nosso apartamento, nos finais de semana. A avenida Princesa Isabel era reduto paraibano, o refúgio no qual eu, Jane, Tom K, Maurílio Rafael e Romério Zeferino, entre garfadas e goles, compartilhávamos nossas experiências, nos sentíamos em família. Há tanto o que contar sobre Tom K em terras soteropolitanas que certamente seria possível escrever um romance. De modo geral, sua música é alegre, leve, reflete o seu espírito sagaz. O arranjo do Xote das Meninas, por exemplo, cantado mundo afora, eu considero um clássico. Ao longo de todos esses anos, Tom K contribuiu decisivamente para o desenvolvimento da prática coral em vários campos. Foi ele o responsável pela criação de muitos grupos e também a iniciação e formação de um grande número de regentes na região. Eu, como já disse, orgulhosamente me incluo neste rol. Ele também compôs e arranjou inúmeras obras, propôs aquilo que denomino de repertórios possíveis, com graus de dificuldade variados e que atendem às necessidades de diferentes conjuntos. É por isso que, neste momento, todas as homenagens lhes são pertinentes e justas. Recebe, portanto, maestro-amigo, nosso abraço de gratidão, nosso respeito, nosso reconhecimento por tudo o que você fez, nossos votos de felicidades. Que a aposentadoria seja apenas o início de uma nova fase e que você continue embelezando o mundo com sua música-poética, e prossiga construindo esse legado que incontestavelmente já entrou para a história da música no estado da Paraíba. Vladimir Silva *Publicado originalmente em 12 de junho de 2017.

  • O ensino do solfejo

    Uma obra relevante quando o assunto é a aprendizagem do solfejo no contexto da prática coral é Building Choral Excellence: Teaching Sight-Singing in the Choral Rehearsal, de Steven M. Demorest (Oxford, 2001). O livro está organizado em três partes, assim distribuídas: 1) Por que ensinar a leitura à primeira vista?, 2) Como ensinar a leitura à primeira vista? e 3) Quais materiais estão disponíveis?. A primeira seção trata da proposição de Lowell Mason, um dos primeiros a elaborar material didático para o ensino do solfejo nos Estados Unidos da América. Além desse tema, aborda a comercialização de tais produtos e o movimento a cappella nas escolas norte-americanas, destacando que o desenvolvimento da habilidade do solfejo está contido nos padrões nacionais para a educação artística (National Standards for Arts Education, 1994). Na segunda parte, Demorest compara os sistemas fixo e móvel, bem como as concepções de Kodály, Dalcroze e Gordon, apontando as semelhanças entre as propostas do educador húngaro e aquelas do norte-americano, pois ambos acreditavam que os músicos deveriam, antes de qualquer performance, compreender e experimentar a música internamente, por meio de um processo mental denominado de “audiação”. Para exemplificar, o autor elabora planos de aulas que incluem a etapa pré-notacional, a compreensão dos elementos da partitura, a entoação de melodias nos modos maior e menor, a uma e mais partes, bem como jogos. O solfejo e sua conexão com o repertório é abordado, assim como diferentes formas e estratégias para avaliação do nível de aptidão dos coralistas, tanto do ponto de vista individual quanto coletivo. A terceira seção analisa uma ampla gama de materiais que podem ser usados por coros com diferentes níveis. Esse inventário abrange os corais de J. S. Bach e outros livros elaborados com finalidades pedagógicas e que contêm exercícios específicos com graus de dificuldade variados. Steven Demorest (1959-2019) foi educador musical, regente e pesquisador, tendo atuado em várias instituições nos EUA. Seu tratado, Construindo a Excelência Coral: ensinando leitura à primeira vista no ensaio coral, ainda não traduzido, é um livro fundamental para quem deseja ampliar os conhecimentos na área da metodologia do ensaio, psicologia e neurociência cognitiva da música, campos nos quais o referido professor era especialista e deixou vasta contribuição teórico-prática. Muito embora tenha sido escrito há duas décadas e alguns dados encontrem-se desatualizados, esse é um texto enriquecedor, que nos convida à reflexão, que nos faz pensar sobre as numerosas facetas do nosso cotidiano profissional. Para quem deseja ampliar o campo de atuação, essa é uma leitura obrigatória, que fará grande diferença para o (a) regente, sobretudo no que diz respeito aos aspectos educativos da atividade coral. É, portanto, um excelente investimento para aqueles (as) que, de fato, desejam um novo início de ano/vida. Vladimir Silva Leia mais: Livros de solfejo: Melodia Dó móvel ou dó fixo?

  • O canto coral na Paraíba: Gazzi de Sá

    Gazzi de Sá (1901-1981) é a referência do canto orfeônico na Paraíba, na primeira metade do século XX. Nascido em João Pessoa, morou em Salvador e no Rio de Janeiro, onde conheceu de perto o trabalho de Heitor Villa-Lobos. Trabalhou em dois importantes centros educacionais e culturais da capital paraibana: o Liceu e a Escola Anthenor Navarro. Educador, pianista e compositor, atuou também como regente, tendo criado e dirigido o Coral Villa-Lobos, de João Pessoa, cujo repertório incluía clássicos da literatura, assim como novos arranjos e obras, muitas das quais de sua autoria e baseadas na música de tradição oral. Parte deste material foi publicado pela Editora da Universidade Federal da Paraíba, na década de oitenta, sob o título Obras Completas, com apresentação do musicólogo Adhemar Nóbrega, da Academia Brasileira de Música. No livro Método de Musicalização, Gazzi de Sá apresenta alguns dos seus conceitos no campo da educação musical, propondo, dentre outros temas, a associação entre movimento e som, o solfejo relativo e um sistema de notação musical alternativo. Luceni Caetano, da Universidade Federal da Paraíba, tem investigado a vida, a obra e o trabalho desenvolvido por Gazzi de Sá, preenchendo uma importante lacuna nesta área. O resultado de uma das pesquisas foi publicado em 2006, na sua tese de doutorado, intitulada Gazzi de Sá compondo o prelúdio da educação musical na Paraíba: uma história da educação musical na Paraíba nas décadas de 30 a 50, lançada ano passado pela EDUFPB. O acesso à música de Gazzi de Sá ainda é restrito, porque as poucas obras editadas estão esgotadas. Provavelmente, a maior parte do acervo disponível está guardado no Rio de Janeiro, mais especificamente no Centro Educacional de Niterói, local onde trabalhou Hermano Soares de Sá, filho do compositor, e onde atua o regente Luiz Carlos Peçanha, que tem se dedicado à interpretação da obra de Gazzi de Sá. O Grupo Tandaradei, com direção de Theresia de Oliveira, gravou, em 1986, um CD com várias obras do compositor paraibano e que está disponível na internet (http://goo.gl/0UfF1Q). Gazzi de Sá harmonizou, como ele mesmo especifica nas partituras, muitas canções para coro feminino, dentre as quais Corre, corre, lacoxia, Rosa Amarela, Ó mana deix’eu ir e A maré encheu. Nessas obras chamam a atenção a vivacidade rítmica, as harmonias sofisticadas e o uso sistemático das onomatopeias (nan, tum, tim, blingue, bigue), comumente empregadas para fazer referência aos instrumentos de percussão e ao caráter dançante das músicas. Gazzi de Sá contribuiu para a expansão da literatura coral paraibana, sobretudo na primeira metade do século XX, e sua obra, porque é diversa e ainda pouco conhecida, precisa ser promovida, estudada e interpretada. Vladimir Silva

  • Pensar, agir e cantar como solista

    Quando a aprendizagem do repertório coral ocorre apenas por meio da memorização, quase sempre é necessário repassar muitas vezes um mesmo trecho, fato que pode tornar os ensaios morosos, comprometendo o cronograma de atividades do grupo e a interpretação de outras obras. Nesse contexto, a inclusão de uma literatura mais complexa, elaborada e variada, seja sob o ponto de vista melódico, harmônico, rítmico ou textural, é quase sempre descartada, pois não há espaço, e em muitos casos interesse, para tal tipo de abordagem. A situação é mais ou menos contornada se o conjunto tem integrantes que, muito embora não saibam ler partitura, têm boa memória musical. Em certa medida, eles são a referência para aqueles mais inseguros e assumem o papel de arrimos do naipe. O que parece ser uma solução, a priori, pode, na verdade, ser um problema, sobretudo quando se estabelece uma relação de dependência, viciosa, e o coro não consegue cantar sem tais líderes. Esse quadro se agrava quando esse cantor, consciente da responsabilidade que tem dentro do grupo, se considera insubstituível e passa a agir de forma inconveniente e perigosa, tratando os demais colegas e o regente como reféns dos seus caprichos, vontades e opiniões. Algumas atitudes contribuem para ratificar esse status. Às vezes, o ensaio não começa enquanto esses indivíduos não chegam. Em outras ocasiões, as apresentações são canceladas porque tais coralistas não podem participar. Quando esse tipo de liderança involuntária ganha notoriedade no âmbito de um grupo e conta com a aquiescência dos seus integrantes, recebendo elogios excessivos e/ou tratamento diferenciado, os prejuízos se revelam a curto, médio e longo prazo. Tal conjuntura fortalece o vedetismo daqueles que se acham imprescindíveis, potencializam reações passionais, esvaziam o sentido sócio-político-cultural-educativo da prática coral. Memória, ouvido e voz são, indiscutivelmente, atributos necessários para todo e qualquer intérprete. No entanto, como regentes, precisamos trabalhar objetivamente o solfejo e a técnica do canto, explorando o potencial de cada um dos membros do coro, indistintamente, seja num grupo religioso, de empresa ou universitário, de vozes afins ou mistas, adulto ou infanto-juvenil. À semelhança do que ocorre com o entrelaçamento dos sujeitos e contrassujeitos de uma composição polifônica, nossa ação deve favorecer a autonomia, estimular as relações interdependentes, tanto no plano afetivo quanto do saber/fazer musical, evitando, sob todas as perspectivas, os vínculos que criam dependência, relações doentias, o estrelato. Fomentar uma nova forma de atuação, criando mecanismos que assegurem a autossuficiência dos cantores, sem perder de vista, todavia, a coletividade que a prática coral exige, parece ser um caminho viável. Em outros termos, queremos que os nossos coralistas pensem, ajam e cantem como solistas, mas sempre em uníssono. Vladimir Silva

  • Dó móvel ou dó fixo?

    Um método de ensino é um conjunto de regras e princípios que orientam a prática pedagógica, devendo ser entendido como o meio através do qual atingimos um fim. Existem vários métodos dirigidos para o ensino do solfejo. No solfejo fixo, as sílabas especificam o nome das notas, independente da função. Muitos estudiosos argumentam que o método é excelente para o desenvolvimento do ouvido absoluto, o que ainda é matéria controversa. No solfejo fixo, a notação musical é a referência, e as notas são sempre designadas pelo mesmo nome: sol, solb ou sol#, por exemplo, será “sol”; já o intervalo dó–mi, dó#–mi, dó–mib ou dó#–mib será “dó-mi”. Alguns professores focalizam a atenção no ensino dos intervalos, isolando-os do contexto musical. Este método parece ser útil quando o regente precisa resolver problemas de afinação específicos, nas passagens mais difíceis do repertório. Quanto ao solfejo relativo, os nomes das notas são referências que ajudam a estabelecer a distância entre os graus da escala, uma vez que a atribuição dos nomes das notas é feita com base na análise harmônica e não apenas na notação musical. O solfejo é funcional, e a transposição é a essência do método. Para qualquer tom no modo maior, o modelo é sempre a escala de dó, enquanto no modo menor a referência é a escala de lá. As notas alteradas podem receber diferentes nomenclaturas, dependendo do contexto no qual se inserem. Tomando dó como ponto de partida, temos a seguinte escala cromática ascendente: dó, di, ré, ri, mi, fá, fi, sol, si, lá, li, ti. Em sentido descendente, temos: dó, ti, te, lá, le, sol, se, fá, mi, me, ré, ra, dó. O método móvel, que tem suas origens associadas ao sistema hexacordal desenvolvido por Guido D’Arezzo, ganhou força e projeção com o trabalho de Zoltán Kodály, na Hungria, na primeira metade do século XX. Alguns educadores, ao invés de sílabas, utilizam números no ensino do solfejo relativo. Os números especificam os graus da escala, e o primeiro grau é sempre a tônica. O uso dos gestos (manossolfa) também contribui para a aprendizagem, facilitando a internalização das relações entre as diversas alturas, exigindo mais atenção do aluno. Cada método apresenta vantagens e desvantagens. Cabe ao regente avaliá-las e escolher aquele que atende às suas necessidades, pois mais importante que o método é a forma como o professor o utiliza. Além disso, se o educador domina o método, o resultado será refletido no trabalho dos alunos. Assim, a nossa prática coral, ainda baseada na memorização do repertório através do exaustivo e insignificante processo de repetição, adquirirá novo sentido e, finalmente, colheremos os frutos de uma ação planejada e objetiva. Vladimir Silva

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