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  • Pensar, agir e cantar como solista

    Quando a aprendizagem do repertório coral ocorre apenas por meio da memorização, quase sempre é necessário repassar muitas vezes um mesmo trecho, fato que pode tornar os ensaios morosos, comprometendo o cronograma de atividades do grupo e a interpretação de outras obras. Nesse contexto, a inclusão de uma literatura mais complexa, elaborada e variada, seja sob o ponto de vista melódico, harmônico, rítmico ou textural, é quase sempre descartada, pois não há espaço, e em muitos casos interesse, para tal tipo de abordagem. A situação é mais ou menos contornada se o conjunto tem integrantes que, muito embora não saibam ler partitura, têm boa memória musical. Em certa medida, eles são a referência para aqueles mais inseguros e assumem o papel de arrimos do naipe. O que parece ser uma solução, a priori, pode, na verdade, ser um problema, sobretudo quando se estabelece uma relação de dependência, viciosa, e o coro não consegue cantar sem tais líderes. Esse quadro se agrava quando esse cantor, consciente da responsabilidade que tem dentro do grupo, se considera insubstituível e passa a agir de forma inconveniente e perigosa, tratando os demais colegas e o regente como reféns dos seus caprichos, vontades e opiniões. Algumas atitudes contribuem para ratificar esse status. Às vezes, o ensaio não começa enquanto esses indivíduos não chegam. Em outras ocasiões, as apresentações são canceladas porque tais coralistas não podem participar. Quando esse tipo de liderança involuntária ganha notoriedade no âmbito de um grupo e conta com a aquiescência dos seus integrantes, recebendo elogios excessivos e/ou tratamento diferenciado, os prejuízos se revelam a curto, médio e longo prazo. Tal conjuntura fortalece o vedetismo daqueles que se acham imprescindíveis, potencializam reações passionais, esvaziam o sentido sócio-político-cultural-educativo da prática coral. Memória, ouvido e voz são, indiscutivelmente, atributos necessários para todo e qualquer intérprete. No entanto, como regentes, precisamos trabalhar objetivamente o solfejo e a técnica do canto, explorando o potencial de cada um dos membros do coro, indistintamente, seja num grupo religioso, de empresa ou universitário, de vozes afins ou mistas, adulto ou infanto-juvenil. À semelhança do que ocorre com o entrelaçamento dos sujeitos e contrassujeitos de uma composição polifônica, nossa ação deve favorecer a autonomia, estimular as relações interdependentes, tanto no plano afetivo quanto do saber/fazer musical, evitando, sob todas as perspectivas, os vínculos que criam dependência, relações doentias, o estrelato. Fomentar uma nova forma de atuação, criando mecanismos que assegurem a autossuficiência dos cantores, sem perder de vista, todavia, a coletividade que a prática coral exige, parece ser um caminho viável. Em outros termos, queremos que os nossos coralistas pensem, ajam e cantem como solistas, mas sempre em uníssono. Vladimir Silva

  • O canto coral na Paraíba: Gazzi de Sá

    Gazzi de Sá (1901-1981) é a referência do canto orfeônico na Paraíba, na primeira metade do século XX. Nascido em João Pessoa, morou em Salvador e no Rio de Janeiro, onde conheceu de perto o trabalho de Heitor Villa-Lobos. Trabalhou em dois importantes centros educacionais e culturais da capital paraibana: o Liceu e a Escola Anthenor Navarro. Educador, pianista e compositor, atuou também como regente, tendo criado e dirigido o Coral Villa-Lobos, de João Pessoa, cujo repertório incluía clássicos da literatura, assim como novos arranjos e obras, muitas das quais de sua autoria e baseadas na música de tradição oral. Parte deste material foi publicado pela Editora da Universidade Federal da Paraíba, na década de oitenta, sob o título Obras Completas, com apresentação do musicólogo Adhemar Nóbrega, da Academia Brasileira de Música. No livro Método de Musicalização, Gazzi de Sá apresenta alguns dos seus conceitos no campo da educação musical, propondo, dentre outros temas, a associação entre movimento e som, o solfejo relativo e um sistema de notação musical alternativo. Luceni Caetano, da Universidade Federal da Paraíba, tem investigado a vida, a obra e o trabalho desenvolvido por Gazzi de Sá, preenchendo uma importante lacuna nesta área. O resultado de uma das pesquisas foi publicado em 2006, na sua tese de doutorado, intitulada Gazzi de Sá compondo o prelúdio da educação musical na Paraíba: uma história da educação musical na Paraíba nas décadas de 30 a 50, lançada ano passado pela EDUFPB. O acesso à música de Gazzi de Sá ainda é restrito, porque as poucas obras editadas estão esgotadas. Provavelmente, a maior parte do acervo disponível está guardado no Rio de Janeiro, mais especificamente no Centro Educacional de Niterói, local onde trabalhou Hermano Soares de Sá, filho do compositor, e onde atua o regente Luiz Carlos Peçanha, que tem se dedicado à interpretação da obra de Gazzi de Sá. O Grupo Tandaradei, com direção de Theresia de Oliveira, gravou, em 1986, um CD com várias obras do compositor paraibano e que está disponível na internet (http://goo.gl/0UfF1Q). Gazzi de Sá harmonizou, como ele mesmo especifica nas partituras, muitas canções para coro feminino, dentre as quais Corre, corre, lacoxia, Rosa Amarela, Ó mana deix’eu ir e A maré encheu. Nessas obras chamam a atenção a vivacidade rítmica, as harmonias sofisticadas e o uso sistemático das onomatopeias (nan, tum, tim, blingue, bigue), comumente empregadas para fazer referência aos instrumentos de percussão e ao caráter dançante das músicas. Gazzi de Sá contribuiu para a expansão da literatura coral paraibana, sobretudo na primeira metade do século XX, e sua obra, porque é diversa e ainda pouco conhecida, precisa ser promovida, estudada e interpretada. Vladimir Silva

  • O canto coral na Paraíba: Tom K

    Antônio Carlos Batista Pinto Coelho, mais conhecido como Tom K, nasceu em Recife, Pernambuco, mas há muitos anos adotou a capital paraibana como sua terra natal. Graduado em Violão pela Universidade Federal da Paraíba, tornou-se uma referência no mundo musical por sua atuação como compositor e regente. Foi no final dos anos oitenta que tive o prazer de conhecê-lo, quando ingressei no curso de Licenciatura em Educação Artística, com habilitação em Música, no Campus I da UFPB. Tom K lecionava na graduação e foi um dos meus primeiros professores de Regência. Naqueles anos em João Pessoa, tive a oportunidade de acompanhar o trabalho que desenvolvera com o Madrigal Pedro Santos, indiscutivelmente um dos melhores coros que o estado já teve. Depois, por curto período, fui seu assistente no coral da Fundação Musical Isabel Burity. Por conta da minha mudança para Teresina, passamos algum tempo afastados. Esse fato foi revertido quando nos reencontramos em Salvador. Na capital baiana, entre 1996 e 1999, fomos colegas no Mestrado em Música, na classe do professor Erick Vasconcelos. Vivemos intensamente aqueles três anos. Convivíamos diariamente na Escola de Música, no Vale do Canela. Caminhamos juntos, subindo e descendo ladeiras, pesquisando e conversando, às vezes em diferentes bibliotecas e salas, quase sempre no nosso apartamento, nos finais de semana. A avenida Princesa Isabel era reduto paraibano, o refúgio no qual eu, Jane, Tom K, Maurílio Rafael e Romério Zeferino, entre garfadas e goles, compartilhávamos nossas experiências, nos sentíamos em família. Há tanto o que contar sobre Tom K em terras soteropolitanas que certamente seria possível escrever um romance. De modo geral, sua música é alegre, leve, reflete o seu espírito sagaz. O arranjo do Xote das Meninas, por exemplo, cantado mundo afora, eu considero um clássico. Ao longo de todos esses anos, Tom K contribuiu decisivamente para o desenvolvimento da prática coral em vários campos. Foi ele o responsável pela criação de muitos grupos e também a iniciação e formação de um grande número de regentes na região. Eu, como já disse, orgulhosamente me incluo neste rol. Ele também compôs e arranjou inúmeras obras, propôs aquilo que denomino de repertórios possíveis, com graus de dificuldade variados e que atendem às necessidades de diferentes conjuntos. É por isso que, neste momento, todas as homenagens lhes são pertinentes e justas. Recebe, portanto, maestro-amigo, nosso abraço de gratidão, nosso respeito, nosso reconhecimento por tudo o que você fez, nossos votos de felicidades. Que a aposentadoria seja apenas o início de uma nova fase e que você continue embelezando o mundo com sua música-poética, e prossiga construindo esse legado que incontestavelmente já entrou para a história da música no estado da Paraíba. Vladimir Silva *Publicado originalmente em 12 de junho de 2017.

  • O Canto Coral na Paraíba: Grupo Anima

    O Grupo Anima, criado em meados de 1985 pela flautista cearense Sandra Albano, dedicou-se em sua fase inicial à interpretação do repertório renascentista e barroco para flautas doces. Além da fundadora, integraram as primeiras formações Helena Rodrigues, Eli-Eri Moura, Marisa Nóbrega, Déa Santos, Luciênio Macêdo, Roderick Fonseca, Didier Guigue, dentre outros. Foi com essa proposta que realizou o Circuito de Música Antiga, apresentando-se em várias cidades do interior do estado, em Natal, Fortaleza e Maceió, bem como em Porto Alegre, onde participou do 3º Festival Internacional de Coros. Posteriormente, já em novo formato e sob a direção de Eli-Eri Moura, tive a oportunidade de conhecer o trabalho do consorte em 1986, durante o III Festival Nordestino de Corais, em Campina Grande. Digitalizamos o áudio que foi gravado ao vivo nesta ocasião, em fita K-7, e produzimos uma animação (veja aqui). Na ocasião, apresentaram-se combinando vozes e instrumentos na execução de clássicos extraídos dos cancioneiros ibéricos, muito embora os espetáculos fossem mais complexos, abarcando também números de dança com os bailarinos do Ballet Espaço. A presença do Anima na Serra da Borborema nos fez entrar em contato com uma literatura específica, interpretada com propriedade e que chamou a atenção do público. A seleção e a sequência das peças nos permitiram ouvir canções lentas e rápidas, o diálogo entre solistas e tutti, ressaltando os elementos poéticos essenciais à compreensão da diversidade temática que aqueles textos abarcavam, alguns mais líricos e solenes, outros mais irônicos e com duplo sentido. Foi uma aula inspiradora. Na sua terceira fase, o agrupamento dedicou-se à música brasileira, focando em criações inéditas, como, por exemplo, a Missa Breve, para solista, coro e quarteto de madeiras, e a opereta Os reis simultâneos, ambas frutos da parceira Moura-Solha. Obras seletas da MPB também foram incorporadas ao Anima, que também fez a estreia da Misa Criolla, de Ariel Ramirez, na Paraíba. Em 1989, porque Eli-Eri Moura foi para o Canadá, passei a coordenar a equipe, que recebeu novos integrantes e ampliou o repertório. Participamos de vários eventos, incluindo o 5º Encontro Sergipano de Corais, em Aracaju. Infelizmente, por uma série de razões, nossas atividades foram interrompidas naquele mesmo ano. Contudo, o ciclo da vida, que tudo renova, fez brotar, há poucos anos, o IAMAKÁ, sob a liderança de Eli-Eri Moura, que segue, resguardadas as devidas proporções, a mesma linha da música de câmara produzida pelo Anima, nos anos oitenta. Acompanhar e reger esse conjunto foi relevante para a consolidação da minha carreira musical. À semelhança das iniciativas do professor José Alberto Kaplan e do maestro Carlos Veiga, que também se dedicaram à música antiga com o Collegium Musicum e o Pró-Música, na capital paraibana, o Anima é uma referência na história do canto coral estadual, pela excelência da sua proposta estética, artística e musical. Vladimir Silva

  • José Alberto Kaplan e a arte engajada

    O dilema entre arte engajada versus arte pura marcou a trajetória do compositor José Alberto Kaplan, sobretudo a partir do final da década de setenta, quando compôs Duas Canções Irreverentes (1978), Trilogia (1980-1982), Ensino Público e Gratuito (1982), Canção da Saída(1984), Burgueses ou meliantes (1984), Duas Canções Natalinas (1984), Natal do Homem Novo (1984) e O Refletor (1988). Além de seus textos, nestas peças ele utiliza versos de Leandro Gomes de Barros, Ferreira Gullar, Ernest Cardenal e Bertold Brecht, todos com forte teor irônico, satírico, crítico e político. Durante o XXVIII Congresso da ANPPOM, eu, José Adriano de Sousa Lima Júnior e Luciênio de Macêdo Teixeira apresentamos uma pesquisa que teve como objetivo analisar a Cantata pra Alagamar no contexto da sua produção, recepção e circulação. Para ler o texto completo, basta acessar os Anais do Congresso. No final dos anos setenta, Kaplan estava interessado em produzir uma música funcional (Gebrauchsmusik), em conexão com as ideias de Kurt Weill e Bertold Brecht. Foi nesse panorama que nasceu a Cantata pra Alagamar, que teve como ponto de partida o conflito latifundiário ocorrido na Fazenda Alagamar, no interior da Paraíba. A Cantata, escrita em 1979 para narrador, jogral, solistas, coro misto e conjunto instrumental, com texto de Waldemar Solha no padrão do martelo agalopado e da gemedeira, tem vinte e três movimentos. Nas palavras do próprio autor, “é um exemplo de arte engajada, que enfrenta os problemas do seu tempo sem perder de vista o horizonte estético.” A instabilidade econômica e política dos anos setenta, no Brasil, afetou diretamente a vida no campo, provocando o êxodo rural. O Proálcool contribuiu para esse quadro, e o conflito de Alagamar se insere neste ambiente, que, de forma polissêmica e polifônica, está presente na Cantata, posto que o seu enunciado demarca a posição dos autores, manifestando, ao mesmo tempo, a relação com o objeto do enunciado e também a relação do compositor e do poeta com os enunciados dos outros. Quando analisada fora desse contexto, elimina-se o conflito dialógico e ideológico que a obra revela, as marcas atenuadas da alternância dos sujeitos falantes que sulcaram o enunciado por dentro, como pontua Bahktin. Relevante para a Estética é o fato de que a Cantata, um exemplo de arte engajada, contém elementos intrínsecos que validam a sua autonomia musical, assegurando a fruição do intérprete-ouvinte-analista. A sua verdade está para além do panfleto motivacional que levou o compositor a escrevê-la. A obra, que exalta a desobediência civil como forma de luta e enfatiza a importância da organização como meio de conseguir a força necessária para enfrentar os poderosos, permanece atual, ocupando lugar de destaque na literatura coral brasileira do século XX, tanto pelo seu conteúdo político-poético quanto pela sua estrutura musical-estética. Vladimir Silva

  • Por favor, respeitem o artista!

    Estabelecer-se profissionalmente é uma tarefa árdua para o músico. Durante o tempo de estudante, pensei que jamais iria conseguir sobreviver com o meu trabalho, porque quase todas as apresentações que realizava eram gratuitas e muito raramente recebia outro tipo de apoio logístico. Hoje, as coisas são diferentes por conta da experiência e do investimento que fiz ao longo de duros anos estudando. Tenho sido muito seletivo com os convites que recebo e sempre procuro fugir dos empreendimentos sem retorno financeiro. As pessoas devem entender que, à semelhança de qualquer outro profissional, o artista também precisa ser remunerado pelos seus serviços. Para preparar um concerto, um músico, além de adquirir partituras e equipamentos, passa horas estudando e ensaiando em busca da melhor sonoridade e interpretação. Trata-se de um investimento de alto custo. Abomino com veemência aquela conhecida lengalenga de que não se tem dinheiro para pagar os músicos. Também detesto quando me pedem para reduzir o número de intérpretes e o repertório com o objetivo de abater gastos. Ao ouvir esse tipo de sugestão, informo que o trabalho de preparação de uma obra é o mesmo, independentemente da quantidade de pessoas envolvidas. O mais engraçado, entretanto, é que, dificilmente, esses indivíduos agem da mesma forma e com mesquinhez nos escritórios dos advogados, arquitetos, engenheiros, dentistas ou médicos. Geralmente, pagam o que eles pedem porque, em muitos casos, são reféns de tais profissionais, nem sempre tão confiáveis e honestos. Contudo, em matéria de música, a realidade não é bem essa. Sempre que me convidam para realizar concertos e sou informado sobre a indisponibilidade de recursos financeiros, penso antes de responder. Investigo bastante para saber do que se trata. Quando percebo que alguém está querendo se aproveitar do meu trabalho, manifesto a minha indignação e digo que estou ofendido, pois considero um absurdo que tanto os empresários, que faturam alto com os seus negócios, quanto o governo, que arrecada fortunas com os nossos impostos, aleguem falta de recursos para a viabilização de projetos culturais que, em última instância, só servem para promovê-los e projetá-los política e socialmente. Propostas indecentes como estas explicitam a fragilidade das políticas públicas na nossa área, assim como o preconceito e as limitações dos investimentos da iniciativa privada neste setor. Vou além. Elas nos levam a crer que o dinheiro arrecadado pelo setor estatal, que poderia e deveria ser investido em educação, arte e cultura, está, provavelmente, sendo retido, desviado, usado para outros fins, em outras palavras, embolsado indevidamente. Por favor, parem com isso! Respeitem o cidadão. Valorizem os artistas. Vladimir Silva

  • Um som inconfundível

    O maestro Nelson Mathias regeu o Coral da UFPB, Campus II, Campina Grande, entre 1978 e 1982. Formado por cerca de sessenta cantores, o coro ensaiava nas dependências do Núcleo de Extensão Cultural (NEC-UFPB), no Teatro Municipal Severino Cabral, duas horas por dia, de segunda a sexta-feira. A preparação vocal do conjunto estava a cargo da professora Célia Bretanha Junker, cuja ação didático-pedagógica tinha como base os princípios propostos por Madeleine Mansion. A sonoridade era leve e ágil, razão pela qual o grupo dedicou-se à interpretação de várias obras da renascença francesa. As gravações das apresentações do Coral da UFPB, arquivadas em fitas k-7, em diferentes eventos entre 1978 e 1979, reiteram o que estamos falando. Muito embora parcialmente comprometidos pela ação do tempo, nestes áudios é possível identificar vários elementos. A técnica vocal está em processo de consolidação e há equilíbrio e controle da dinâmica e da articulação. Percebe-se o fraseado musical, bem como o diálogo entre os diferentes naipes. Também é notória a precisão rítmica, que ressalta os aspectos percussivos da nossa música popular, assim como as sutilezas e as entrelinhas dos arranjos assinados por Arlindo Teixeira, Clóvis Pereira, Damiano Cozzella e o próprio Nelson Mathias. Célia Bretanha e Nelson Mathias concebiam a música para além dos aspectos técnicos. Para eles, era necessário que os cantores compreendessem poética, filosófica e espiritualmente o que era cantado, a polissemia músico-textual, motivo pelo qual o Coral da UFPB normalmente não se apresentava com partituras, pois, na concepção do seu regente, os cantores deveriam estar livres para ver o maestro e para transmitir com mais liberdade o sentido musical daquilo que se cantava. O Coral da UFPB, sob a direção desses profissionais, foi premiado em festivais, recebeu o reconhecimento do público e da crítica. A proposta, além de artística e educativa, foi também política. Como atestado em alguns dos relatos coletados na pesquisa que realizamos, repetidas vezes o público surpreendeu-se com a atuação do coro. Mesmo sabendo que o grupo era coordenado por dois expoentes nacionais, frequentemente esperava-se do “Coral da Paraíba” um direcionamento técnico e artístico inconsistente, um repertório predominantemente regional e adornado com o placebo cênico, recurso em voga àquela época e que até hoje continua sendo usado, na maioria das vezes, para mascarar incompetências. A admiração era proporcional ao preconceito. Por isso, quando o coral interpretava com maestria a literatura de diferentes países, autores e períodos, o silêncio, o encantamento, a curiosidade e o respeito também preenchiam todos os espaços. Os Cantores da Rainha contrariaram expectativas, desconstruíram estereótipos, romperam barreiras. Para conhecer mais sobre essa página da nossa história, ouça o inconfundível som do Coral da UFPB (vídeo 1 e vídeo 2) e leia a nossa comunicação no XXII Congresso Nacional da ABEM, realizado em Natal-RN, em 2015. Vladimir Silva

  • A alta performance no canto coral brasileiro

    Nelson Mathias e Célia Bretanha dirigiram o Coral do SESI, em Brasília, nos anos setenta, e gravaram um LP em 16 canais, na RCA, no Rio de Janeiro, com direção artística de Carlos Guarany. O álbum contém nove faixas, todas dedicadas à música brasileira, incluindo Saia bonita (Baião - Carlos Alberto Pinto Fonseca), Suíte dos pescadores (Dorival Caymmi - Damiano Cozzella), Beira mar (Tema afro-brasileiro - Esther Scliar), Rolinha (Chula marajoara - Waldemar Henrique), Cromo (Kindemiro Teixeira - Pedro S. de Amorim - Nivaldo Santiago), Ofulú Lorêrê (Osvaldo Lacerda), Cambinda elefante (Maracatu - Ernst Mahle), Construção (Chico Buarque - Damiano Cozzella) e Carnaval I (Vários autores - Damiano Cozzella). A interpretação do coro é exemplar em muitos aspectos. O grupo canta no tempo, afinado, com técnica e expressão. Destaco tudo isso porque o disco foi gravado em 1975, numa época em que não existiam esses produtos mágicos que muitos usam em estúdio atualmente para afinar ou duplicar vozes. Ali não há maquiagem. A sonoridade desse coro assemelha-se àquela do Coral da UFPB, Campus II, Campina Grande, que os dois também dirigiram entre 1978 e 1982, ratificando que a identidade de um ensemble é definida pelos seus dirigentes. A comparação pode ser observada no texto/vídeo Um som inconfundível. A qualidade dos arranjos é outro ponto que chama a atenção, sobretudo aqueles escritos por Damiano Cozzella e que são interpretados com a orquestração original. Construção e Carnaval I são pérolas, especialmente por conta das madeiras e dos metais. Já a Suíte dos Pescadores inclui um quinteto de cordas, que pouca gente conhece e que toca, a maior parte do tempo, colla voce. Na verdade, pode-se dizer que este acompanhamento é non obbligato, razão pela qual comumente se executa a versão a cappella. Não obstante, compartilharei uma versão completa desse arranjo brevemente para que todos possam conhecê-lo e quem sabe interpretá-lo. Henrique Morelebaum, Marlos Nobre e Alberto Jafé assinam a apresentação desta preciosidade. Este último, inclusive, destaca a prevalência do uníssono e a beleza da homogeneidade, que ultimamente certas linhas de pensamento tentam refutar e considerar démodé equivocadamente e com argumentos dúbios. A unidade é tudo na prática de conjunto, seja num trio de forró, coro ou orquestra. Esses mestres exemplificam o que é excelência, o que é gravar sem Auto-Tune, sem placebos cênicos ou excessiva voz de peito em nome de uma brasilidade ou livre auto-expressão duvidosas. Eles nos mostram que, sim, é possível cantar qualquer repertório com qualidade com um coral formado por gente comum, “50 figurantes, moças e rapazes, filhos dos operários das indústrias e trabalhadores”, como foi o caso do Coral do SESI, da Capital Federal (ouça a playlist). Nelson Mathias e Célia Bretanha, em outros termos, nos ensinam o que é a alta performance no canto coral brasileiro. Vladimir Silva

  • É isso, gente!

    Dezembro. É hora de fazer um balanço e rever o que produzimos esse ano. Tal processo reflexivo nos dá uma visão das nossas ações, sobretudo nos segmentos acadêmico e artístico. Do ponto de vista da produção bibliográfica, publicamos resenhas, capítulos de livros, comunicações e artigos, incluindo os seguintes títulos: 1) Reflexões e estratégias para uma prática coral dialógica e colaborativa; 2) A Missa Sertaneja (1958), de Reginaldo Carvalho; 3) Canto Coletivo e Canto Coral: um estudo sobre a música vocal moçambicana; e 4) Entre o texto, o palco e a tela: uma análise da trilha sonora de Ladrão em noite de chuva, de Reginaldo Carvalho. Também prefaciamos a coletânea Sons de África e da Diáspora Atlântica: História, Musicologia e Interfaces, organizada por Andrea Adour e Josivaldo Pires de Oliveira. O marco foi o lançamento do livro Canções para sorrir e sonhar, com ilustrações de Sabrina Cipriano, ocorrido em julho. Como nos versos da canção Movimentando, que alegria, quanta emoção. Com relação à atividade artística, com o Coro de Câmara apresentamos cinco programas em Campina Grande-PB, João Pessoa-PB, Natal-RN e Porto Alegre-RS. O primeiro deles foi o VI Concerto da Paixão, realizado na quaresma e no qual apresentamos obras de J. S. Bach e de várias compositoras, incluindo Isabella Leonarda, Eva Ugalde, Rosephanye Powell, Elvira Drummond, lza Nogueira e Lorrany Andrade. Depois, interpretamos o Requiem para um Trombone, de Eli-Eri Moura, como parte da programação alusiva aos 10 anos da Orquestra Sinfônica da UFPB e na abertura do XIV Festival Internacional de Música de Campina Grande. No mesmo período, estreamos o Cancioneiro Atlântico, de Danilo Guanais, cantata cênica para solistas, coro misto e consorte formado por flautas, violão, violoncelo e percussão. O Requiem, de W. A. Mozart, integrou a programação do IV Festival Musica Dei e da II Convenção da Nova Associação Brasileira de Regentes de Coros (ABRACO). Em dezembro, o VI Concerto para o Advento, realizado na capital paraibana, encerrando a temporada da OSUFPB, e no Mosteiro Santa Clara, na Serra da Borborema, ocasião na qual estreamos os Cinco quadros Natalinos, de Danilo Guanais. A Coordenação Geral de Arte e Cultura (PROPEX-UFCG), a ABRACO e o Programa de Pós-Graduação em Música da UFPB igualmente nos levaram a realizar e a participar de muitas atividades em todo o país, fato que nos permitiu interagir com um sem-número de estudantes e profissionais. Esse foi um ano intenso, de grandes desafios e de realizações incríveis. Por isso, às vésperas de iniciarmos um novo ciclo, agradecemos o apoio e a parceria das instituições e empresas que estiveram conosco e dos colegas e amigos(as) que também nos acompanharam nessa caminhada. É isso, gente: estamos vivendo a melhor época das nossas vidas, inseridos nesse tempo, povo, lugar! Vladimir Silva

  • Jovens tardes de domingo

    Fim de semana, na minha infância, era sinônimo de muita música. Todos os sábados, eu e meus amigos passávamos a tarde tocando flauta e violão. Empolgados, não sentíamos o tempo passar e só quando ouvíamos o badalar do sino da Capela João Moura, avisando que a missa das cinco estava para começar, que decidíamos parar. Eu saia às pressas, correndo ao encontro da minha tia-avó, Maria Ferreira, para juntos seguirmos até a igreja. Durante a celebração, esperava com certa ansiedade a hora dos cânticos, que eram anunciados nos primeiros acordes do pequeno e nasalado harmônio, um órgão de fole que Irmã Aldete, a madre superiora, dominava com maestria. Maria se orgulhava quando me (ou)via cantando com empolgação. No domingo pela manhã, eu sempre acordava cedo para ouvir a Campina FM e o programa Clássicos Eternos, apresentado por Hilton Mota. A temática era variada, o que me permitia conhecer gradualmente a literatura musical de diferentes períodos, autores e estilos, o que só aumentava o meu interesse pela música. Eu nem imaginava que, anos mais tarde, seria o produtor e apresentador desse mesmo programa. Em casa, após o almoço, nos divertíamos, eu e a minha irmã mais velha, com o programa Qual é a música?, no qual Sílvio Santos desafiava os participantes com uma gincana musical. Meu pai também gostava desse jogo. Contudo, preferia ouvir suas músicas, especialmente depois que adquiriu um “três-em-um”, o aparelho de som mais moderno da época e no qual era possível ler e gravar fitas cassete, sintonizar rádio AM e FM e escutar discos de vinil. Comumente, ele colocava na bandeja Gal Tropical, Ave de Prata, o primeiro trabalho que Elba Ramalho gravou, e a Arte de Chico Buarque, que ouvíamos deitados no chão duro, frio e de cimento avermelhado, porém aconchegante, da sala da nossa casa. Curiosamente, meu irmão caçula gostava de ouvir Chico Buarque cantando Minha história (Gesubambino) e falando da pobre mulher que, por não se lembrar de acalantos, ninava o filho pequeno com cantigas de cabaré. E ele sorria e pedia para meu pai repetir várias vezes aquele laiá, laiá. Anos depois, já no início da adolescência, no fim da tarde, quando no alto da Rua das Imbiras os portões da AABB se abriam, avisando que a matinê estava encerrando, corríamos para aproveitar o que restava da festa. Enquanto meus amigos se dirigiam para o salão, eu me apressava para ficar na lateral do palco, vendo e ouvindo os artistas, grupos que (en)cantavam, como, por exemplo, os Vikings, Som Livre, Ogírio Cavalcante e Trepidants. Hoje é domingo e, ao ouvir a canção de Roberto Carlos na voz de Gal Costa, com saudade lembrei-me daquelas jovens tardes, tantas alegrias, velhos tempos, belos dias. Vladimir Silva

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