Quando a aprendizagem do repertório coral ocorre apenas por meio da memorização, quase sempre é necessário repassar muitas vezes um mesmo trecho, fato que pode tornar os ensaios morosos, comprometendo o cronograma de atividades do grupo e a interpretação de outras obras. Nesse contexto, a inclusão de uma literatura mais complexa, elaborada e variada, seja sob o ponto de vista melódico, harmônico, rítmico ou textural, é quase sempre descartada, pois não há espaço, e em muitos casos interesse, para tal tipo de abordagem.
A situação é mais ou menos contornada se o conjunto tem integrantes que, muito embora não saibam ler partitura, têm boa memória musical. Em certa medida, eles são a referência para aqueles mais inseguros e assumem o papel de arrimos do naipe. O que parece ser uma solução, a priori, pode, na verdade, ser um problema, sobretudo quando se estabelece uma relação de dependência, viciosa, e o coro não consegue cantar sem tais líderes. Esse quadro se agrava quando esse cantor, consciente da responsabilidade que tem dentro do grupo, se considera insubstituível e passa a agir de forma inconveniente e perigosa, tratando os demais colegas e o regente como reféns dos seus caprichos, vontades e opiniões.
Algumas atitudes contribuem para ratificar esse status. Às vezes, o ensaio não começa enquanto esses indivíduos não chegam. Em outras ocasiões, as apresentações são canceladas porque tais coralistas não podem participar. Quando esse tipo de liderança involuntária ganha notoriedade no âmbito de um grupo e conta com a aquiescência dos seus integrantes, recebendo elogios excessivos e/ou tratamento diferenciado, os prejuízos se revelam a curto, médio e longo prazo. Tal conjuntura fortalece o vedetismo daqueles que se acham imprescindíveis, potencializam reações passionais, esvaziam o sentido sócio-político-cultural-educativo da prática coral.
Memória, ouvido e voz são, indiscutivelmente, atributos necessários para todo e qualquer intérprete. No entanto, como regentes, precisamos trabalhar objetivamente o solfejo e a técnica do canto, explorando o potencial de cada um dos membros do coro, indistintamente, seja num grupo religioso, de empresa ou universitário, de vozes afins ou mistas, adulto ou infanto-juvenil. À semelhança do que ocorre com o entrelaçamento dos sujeitos e contrassujeitos de uma composição polifônica, nossa ação deve favorecer a autonomia, estimular as relações interdependentes, tanto no plano afetivo quanto do saber/fazer musical, evitando, sob todas as perspectivas, os vínculos que criam dependência, relações doentias, o estrelato. Fomentar uma nova forma de atuação, criando mecanismos que assegurem a autossuficiência dos cantores, sem perder de vista, todavia, a coletividade que a prática coral exige, parece ser um caminho viável. Em outros termos, queremos que os nossos coralistas pensem, ajam e cantem como solistas, mas sempre em uníssono.
Vladimir Silva
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