As discussões em torno dos aspectos extrínsecos e intrínsecos das diversas práticas musicais têm sido constantes nas nossas conversas formais e informais, na sala de aula e nos ensaios. O tema ficou em evidência por conta da Lei 11.769, de 18/08/2008, que regulamentou a obrigatoriedade da educação musical no ensino fundamental e médio de todo o país.
Muitos administradores, pedagogos e pais têm destacado a contribuição da música no processo de socialização das crianças e adolescentes, estimulando-os criativamente, tornando-os mais sensíveis e perceptivos. É certo que a música pode cooperar em vários processos mentais, desinibindo os indivíduos, desbloqueando as suas emoções, desenvolvendo as suas personalidades, transformando-os. No meu trabalho como regente coral acompanhei de perto as mudanças nos perfis de vários cantores, gente que (re) descobriu o sentido do viver, superou dificuldades, encarou desafios, assumiu uma nova postura perante a realidade. Reconheço que a prática coral contribuiu para despertar, nestas pessoas, tais possibilidades de mudança. No entanto, confesso que, ao entrar na sala de ensaio, nunca tratei dos aspectos extrínsecos à música nem tentei agir como psicólogo ou terapeuta ocupacional, procurando resolver os problemas pessoais dos meus coristas.
Quando ensaiamos, focalizamos nossa atenção nos aspectos objetivos e intrínsecos do fazer musical: ritmo, afinação, dinâmica, articulação, respiração, projeção vocal, sonoridade, fraseado, dicção, texto. Adotamos uma linguagem técnica: longo, curto; forte, fraco; alto, baixo; lento, rápido; legato, staccato. A nossa referência são os parâmetros materiais, físicos, temporais, vocais e acústicos. Só depois de superada esta etapa inicial, que ocupa entre setenta e oitenta por cento do trabalho, é que vamos em direção aos elementos mais subjetivos, expressivos, emocionais e valorativos inerentes à prática coral. E aí usamos o extra musical para motivar e provocar o brilho no olhar. Swanwick, no livro Ensinando música musicalmente (São Paulo: Moderna, 2003), concebe a música como metáfora, como elemento transformador e de transformação, destacando que toda e qualquer ação pedagógica só será válida e eficiente se for concebida em três estágios diferentes, assim caracterizados: 1) transformar notas em gestos; 2) transformar gestos em frases; 3) transformar frases em discurso expressivo, que tenha sentido, que tenha valor, que correlacione conhecimentos acumulados e adquiridos através de uma prática significativa.
Precisamos, portanto, concentrar nossas ações objetivamente, visando o amplo desenvolvimento técnico (musical e vocal) dos nossos cantores e das suas potencialidades emocionais, sensoriais e expressivas, contribuindo direta e decisivamente para a emancipação do canto coral brasileiro, a consolidação da cidadania e, finalmente, o desenvolvimento humano em todas as suas dimensões. Para atingirmos tal meta, devemos avaliar a forma como temos atuado diante dos nossos coros, identificando e definindo aquilo que é (in) apropriado à nossa práxis musical cotidiana.
Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)
*Este texto integra o capítulo “As múltiplas dimensões da prática coral”, do livro Cadernos do Painel: a preparação do regente, organizado por Eduardo Lakschevitz e que contém artigos de Angelo Dias, Gisele Cruz, Lucy Maurício Schimiti, Samuel Kerr e Vladimir Silva.
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