quarta-feira, 20 de maio de 2020

Cantando spirituals

Ao redor do mundo, coros amadores e profissionais cantam spirituals. Compositores como William Dawson, Moses Hogan, Rollo Dilworth e Stacey Gibbs, para citar apenas alguns, arranjaram sucessos internacionais como Soon Ah Will Be Done, The Battle of Jericho, Elijah Rock e Rock’a My Soul. Seja a cappella ou com piano, em andamento lento ou rápido, com caráter reflexivo ou dançante, a interpretação dessas peças exige uma compreensão que vai além dos dados contidos na partitura.

O entendimento da linguagem figurada ajuda na definição do ethos, do tempo, da sonoridade e da concepção de cada peça. O simbolismo associado à água, por exemplo, é explorado recorrentemente nesse modelo de literatura. Logo, a referência à travessia dos rios Jordão ou Mississippi, mais do que uma caminhada em direção ao paraíso, representando a passagem da vida terrena para a eterna, poderia também ser um símbolo da transição entre o regime escravocrata e o abolicionista, numa provável alusão aos estados do norte que, diferentemente daqueles mais ao sul dos EUA, eram contrários à escravidão.

No que concerne à performance, certos grupos têm interpretado esse repertório numa perspectiva historicamente informada, com um inglês estilizado, que tenta reconstruir a pronúncia das nações africanas que participaram do processo de colonização da América do Norte, evitando estereótipos, como no auge do blackface minstrelsy. Por isso, a prática tem sido cantar o fonema 
th como “d” (than = dan; with = wid) ou “f” (mouth = mouf), dependendo da posição no vocábulo. O “r” final e pós-vocálico é praticamente inaudível (Summer = summah; Lord = lawd; your = yo). Há ainda um certo tipo de apócope, no meio da palavra, que objetiva simplificar e permitir ajustes rítmico-textuais, a exemplo do substantivo céu, que, nesses casos, é grafado de modo distinto àquele que consta nos dicionários (Heaven = hev’en). O artigo definido the pode ser cantado de duas formas, isto é, “dee”, antes dos sons vocálicos, e “duh”, precedendo os sons consonantais. Essa espécie de abordagem tem alimentado o debate sobre apropriação cultural. Ademais, porque intrinsecamente associadas à história dos negros escravizados nos Estados Unidos, essas canções espirituais, herança dos povos africanos e afro-norte-americanos, ainda hoje suscitam a discussão em torno do racismo, tema controverso em muitas sociedades, incluindo a estadunidense. Então, para ampliar os estudos, anexo uma lista com artigos e livros que tratam do tema (PDF).

Penso que para cantar spirituals, assim como a literatura sacra afro-brasileira, deve-se extrapolar o aspecto musical. É necessário posicionar-se crítica e reflexivamente, numa perspectiva mística e dialética, que aborde as identidades negras das diásporas e contemple a análise estrutural e discursiva, abrangendo a teia econômica, política e cultural em conexão com a obra em foco, no contexto da sua produção, circulação e recepção, hoje e em diferentes épocas.

Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)

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