Quando nos mudamos para a
residência onde moramos atualmente, fomos recebidos por nossos vizinhos, Lourdes
e Silvério. Além das boas vindas, nos falaram sobre as redondezas e também os possíveis
problemas que poderíamos enfrentar, sobretudo algumas infiltrações por conta da
rua desnivelada e o excesso de água no subsolo.
Seu Silvério passava o dia
em casa, consertando o telhado, arrumando os objetos no corredor lateral ou
limpando o jardim e a churrasqueira para os encontros com a família. Aurora os visitava
frequentemente, antes de iniciar os seus passeios noturnos. Faceira, pulava o
muro e entrava sem pedir licença, despojando-se no meio da varanda. Enquanto os
dois descansavam em suas cadeiras de balanço, acompanhando o movimento da rua e
embalados pela brisa que areja o céu da Serra depois que o sol se põe e a
quietude dos tempos se instala, a felina começava a miar, narrando seus planos
e aventuras num gatês quase
incompreensível, mexendo o rabo solenemente de lá-para-cá-para-lá, não
necessariamente nessa ordem e velocidade, como se estivesse regendo o Adagio for Strings, de Samuel Barber. Dona Lourdes, em virtude do seu temperamento, não era tão afeita àquelas lereias. Não sei se lhe
faltava paciência ou conhecimentos da língua felina para levar adiante a
conversa fiada, quer dizer, miada, com Aurora, que, diga-se de passagem, é uma
gata bela e sedutora, motivo pelo qual era possível farejar certo ciúme naquele
desprezo. Como não queria perturbar uma relação tão duradoura, afinal aqueles
idosos já estavam juntos há mais de cinquenta anos, a esperta felídea saía à
francesa, balançando debochadamente a longa cauda preta.
Num ano qualquer, por causa
das duras chuvas do prolongado inverno, a calçada deles cedeu e afundou. Seu Silvério, decidido a tapar aquele buraco, após longo
planejamento, reorganizou o passeio público e plantou uma Tibouchina granulosa, mais conhecida como quaresmeira, que passou a
cuidar com zelo admirável. O pequeno arbusto ornamental cresceu, mas o meu vizinho
não o viu florar, posto que a sua Páscoa antecipou-se à primavera.
Essa história de Seu
Silvério evocou em mim as memórias do dia em que ouvi a Orquestra Sinfônica da
Paraíba, sob a direção de Eleazar de Carvalho, interpretar Tod und Verklärung, de
Richard Strauss. Esse poema sinfônico descreve a morte de um artista, incluindo passagens da sua infância, os desafios do mundo adulto, as conquistas
terrenas e, por fim, a transfiguração. Tal como a sonoridade da OSPB invadiu o meu ser,
naquela noite no Espaço Cultural em João Pessoa, as folhas da quaresmeira-roxa
que o velho Zezinho profeticamente cultivou começam a mudar as cores do horizonte,
neste outono quaresmal e de quarentena, lembrando-me sobre a transitoriedade e
a fragilidade das coisas e dos indivíduos, dizendo-me que, com efeito, ninguém
morre, mas, na verdade, transfigura-se.
Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)
domingo, 22 de março de 2020
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Quem sou eu

- Vladimir Silva
- Sou paraibano, natural de Campina Grande. Fui seduzido pela arte, pela música e pela literatura há muito tempo. Atualmente, leciono no curso de música da UFCG. Sempre estou aqui e acolá, regendo e cantando, ensinando e aprendendo, ouvindo e contando histórias. Meu perfil profissional completo pode ser acessado na Plataforma Lattes (CNPq): http://lattes.cnpq.br/5912072788725094

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