Resguardadas as devidas proporções, a
decodificação de partituras é uma ação complexa, que requer um refinamento
cognitivo-motor similar àquele que nos é solicitado quando realizamos tarefas
cotidianas, seja cozinhando, praticando esportes, fazendo reparos ou dirigindo veículos. Em
todas essas situações, o nível de atenção/abstração é potencializado, aguçamos o olhar,
calculamos distâncias, concebemos movimentos.
A aprendizagem do solfejo demanda tempo, planejamento, a correlação da teoria
com a prática, a conexão corpo-mente. Logo, a leitura descontextualizada e
inexpressiva de exercícios e obras deve ser banida de qualquer estratégia pretensamente eficiente. Ao agirmos de forma estéril e destituída de
sentido, aumentamos o hiato que distancia o saber do fazer musical. Só a
repetição, consciente e constante, pode assegurar a criação de hábitos e a (re)
construção de imagens, que passarão a ser incorporadas ao nosso
repertório gestual, tornando-se familiares, permitindo-nos agir com naturalidade, garantindo-nos domínio técnico. Sloboda, Sacks e Hargreaves são
autoridades da área e muito dizem sobre o tema. A compreensão destes
pressupostos, à luz da Psicologia Cognitiva, e a revisão das práticas sedimentadas, e ainda em voga, nos indicarão caminhos para a reversão dessa realidade, caracterizada, por
exemplo, pelo alto índice de reprovação e evasão em disciplinas como Percepção Musical.
Certamente, tais mudanças beneficiarão outros contextos. Com indivíduos
perspicazes, este não-lugar, por onde transitam aqueles que nem leem nem
escrevem o que cantam, tocam e ouvem, perderá a sua razão de ser/existir.
Consequentemente, após a erradicação desse analfabetismo funcional, as relações de poder serão definidas sob um novo prisma,
afetando a dinâmica dos ensembles e classes que dirigimos.
Averiguar nossa parcela de responsabilidade neste processo é, portanto, uma
atitude imperativa. Se existem deficiências no desenvolvimento das
habilidades perceptivas, precisamos corrigi-las. Cabe-nos rever de que modo
atuamos; como selecionamos, organizamos e encadeamos conteúdos; que tipos de
atividades executamos; o que estamos julgando nas avaliações; que livros
adotamos; quais metas estabelecemos a curto, médio e longo prazo. Essa não é
uma tarefa fácil. Há docentes/regentes estagnados, que se esqueceram que é
possível reinventar-se, que continuam lecionando tal qual foram ensinados,
reproduzindo modelos questionáveis, perpetuando mitos, potencializando temores,
transferindo para outrem o peso do fracasso das suas próprias inconsistências, na área educacional, artística e profissional. Fujamos do lugar-comum, porque suas fronteiras sedutoras roçam
o abismo da mediocridade.
Que nesta nova fase, possamos examinar a consciência e assumir o mea
culpa, identificando equívocos, excessos e omissões. Que desenvolvamos
estratégias que permitam otimizar a aquisição de conhecimentos, utilizando-se
de tecnologia variada, valorizando os recursos digitais. Que repensemos os
limites e as possibilidades do pragmatismo que a nossa atividade exige,
acreditando que só o treinamento, realizado objetiva e sistematicamente, nos
levará a uma performance proativa, sólida, eficaz, de alta qualidade.
Então, vamos solfejar mais e melhor este ano.
Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)
quinta-feira, 2 de janeiro de 2020
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Quem sou eu

- Vladimir Silva
- Sou paraibano, natural de Campina Grande. Fui seduzido pela arte, pela música e pela literatura há muito tempo. Atualmente, leciono nos cursos de graduação e pós-graduação em Música da UFCG e da UFPB. Sempre estou aqui e acolá, regendo e cantando, ensinando e aprendendo, ouvindo e contando histórias. Meu perfil profissional completo pode ser acessado na Plataforma Lattes (CNPq): http://lattes.cnpq.br/5912072788725094
8 comentários:
Parabéns, professor!
Parabéns, professor! Dou aqui meu testemunho do quão é desafiador inserir "o solfejo" na prática de banda (não que inserir em outras seja tarefa fácil). E a contextualização do que "se solfeja" com o repertório que se trabalha promove ganhos em vários aspectos do processo.
Maravilha!!!
Anotando as referências
Leandro, obrigado por ler e comentar. Caso queira, tenho muitos outros autores e obras para sugerir.
Josenildo, obrigado pela contribuição. A prática de banda, assim como a prática coral, são territórios que precisam ser conquistados. Essa é parte da nossa missão como regentes-educadores. Vamos arregaçar as mangas e seguir.
Olá professor tenho aplicado o solfejo nos ensaios e tem dado certo como o senhor já falou o canto coral como veiculo de educação musical.
Parabéns pela reflexão, professor. Admiro e muito me inspira a forma que pensas e propaga o seu saber musical. De fato, a transmissão do conhecimento se dá muito mais do que aplicar conteúdo, é encantar... regar os alunos como sementes, e vê-los florescer, ser solo fértil... e não terreno, pedregoso ou espinhoso que desmotiva e atrasa. Percepção Musical é uma importante disciplina e merece ser ministrada de forma solene, com entusiasmo, e diligência. E sim, vamos solfejar mais e melhor este ano. É preciso.
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