Aurora chegou numa manhã primaveril. Veio da rua. Assustada, escondeu-se por entre arbustos e plantas ornamentais. Seu miado agudo e faminto despertou nossa atenção. Aos poucos, e de modo recíproco, criamos laços e nos familiarizamos.
Como todo bichano, desde pequena, gosta de explorar tudo, especialmente o vicejante jardim. Foi assim que ela logo descobriu um pequeno ninho na aceroleira, que havia sido o abrigo das rolinhas que também nasceram nesta época de exuberâncias, ventanias, cores, sabores e odores acentuados. Felizmente, os filhotes, que já haviam aprendido a voar, não estavam mais por lá, na ocasião da visita. Por sua natureza, é mais ativa à noite, quando, além de brincar, entra e sai de casa incontáveis vezes. Entre um passeio e outro, um namorico, razão pela qual engravidou duas vezes. Seus filhotes foram adotados por amigos, que, para homenagear seus ídolos, lhes deram nomes relevantes do cenário artístico-cultural, dentre os quais Antunes Filho e Bárbara Heliodora. O primogênito era Belo, um bandoleiro amável que desapareceu numa noite de lua cheia, enfeitiçado pelo feromônio das felinas, já que não podia ver um rabo-de-saia.
Como todo bichano, desde pequena, gosta de explorar tudo, especialmente o vicejante jardim. Foi assim que ela logo descobriu um pequeno ninho na aceroleira, que havia sido o abrigo das rolinhas que também nasceram nesta época de exuberâncias, ventanias, cores, sabores e odores acentuados. Felizmente, os filhotes, que já haviam aprendido a voar, não estavam mais por lá, na ocasião da visita. Por sua natureza, é mais ativa à noite, quando, além de brincar, entra e sai de casa incontáveis vezes. Entre um passeio e outro, um namorico, razão pela qual engravidou duas vezes. Seus filhotes foram adotados por amigos, que, para homenagear seus ídolos, lhes deram nomes relevantes do cenário artístico-cultural, dentre os quais Antunes Filho e Bárbara Heliodora. O primogênito era Belo, um bandoleiro amável que desapareceu numa noite de lua cheia, enfeitiçado pelo feromônio das felinas, já que não podia ver um rabo-de-saia.
Numa das festas dos Santos Reis, de um ano que não me recordo, abri a janela cedo. Aurora, coberta com seu manto negro, estava acordando. Erguendo a cabeça lentamente, como quem contempla a calmaria de janeiro, comentou rosnando: — Dormir é bom! Depois, miando ainda sonolentamente, com os olhos amarelados e semicerrados, completou: — O problema é sonhar, que, às vezes, cansa. Em seguida, levantou-se. Esticou as patas. Arqueou a coluna. Eriçou os pelos. E bocejou, novamente, desta vez mostrando a língua e os dentes ferinos, o palato duro e ondulado, o fundo da boca. Veio ao meu encontro. Tentou me seduzir, esfregando-se. Queria comer, é certo. Pulou e acomodou-se no parapeito, ao lado do copo-de-leite solitário como um sentinela. Num canto, o ipê lilás, que timidamente despertara naquele verão serrano, testemunhou a nossa epifania. Enfim, o alvorecer invadiu o meu lar e o meu coração sem cortinas.
Certo dia, deitou-se ao meu lado. Eu estava ouvindo a Rapsódia Húngara N° 2, de Franz Liszt. Tranquila, começou a balançar a cauda aleatoriamente, como se quisesse acompanhar aquele frenético vai-e-vem. Eventualmente, assustava-se com as variações de dinâmica e com o virtuosismo da pianista, uma intérprete russa cujo nome não importa. Há poucas semanas, aproximou-se e acomodou-se sobre a janela do meu quarto. A trilha matinal era Em nome do amor, um clássico de Glorinha Gadelha e Sivuca, lindamente interpretado pelo célebre casal paraibano, ao som do violão e da sanfona. Por vários instantes, ficou ali, quieta, imóvel, com os olhos fixos, ensimesmada, sem pressa, exercendo a indiferença, vislumbrando o não-ser, naquele não-lugar, no umbral entre a terra e o céu.
Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)