Cheguei a Lisboa ao entardecer. Fui recebido pelo amigo Myguel Santos e Castro, que me
fez andar por ruas, templos e praças, subindo e descendo ladeiras que me
remetiam às cidades históricas brasileiras. Contemplamos o pôr-do-sol às
margens do alaranjado Tejo, ouvindo um samba com sotaque moçambicano. Depois, entre
taças e talheres, queijos e vinhos, conversamos sobre política, educação e música,
comparando os limites e as possibilidades das nossas realidades. Entretidos, só
percebemos a premência das horas e dos gestos quando vimos a lua crescente deslizando
lentamente na janela de vidro.
Com
o dia claro, no Cabo da Roca, o ponto mais ocidental da Europa continental, contemplei
o horizonte azul, entre o mar levemente agitado e o sólido e despido céu. Imaginei
o tráfego das caravelas e o vai-e-vem em direção ao Novo
Mundo, rasgando o Atlântico pesadamente. Na ida, partiam carregadas com o ouro negro. Na volta, abarrotadas com o mineral. Nesse instante, o vento forte
me fez lembrar as muitas aventuras do romance Terra Papagalli, de José Roberto Torero e Marcus Aurelius Pimenta,
uma “narração para preguiçosos leitores da luxuriosa, irada, soberba,
invejável, cobiçada e gulosa história do primeiro rei do Brasil.”
Nas
curvas da estrada de Sintra, avistei castelos e casarios suntuosos, escondidos
por entre a vegetação rica e multicolorida, acentuando a nostalgia que a
estação evoca, tudo em tons pasteis, no modo menor, tal qual em Chant d’Autoumne, de Armand Silvestre e Gabriel
Fauré. No meu percurso, fui da Boca do Inferno à igreja da Freguesia de São
Domingos de Rana, onde ocorrem as folias de reis, época na qual também celebro
meu nascimento. Numa das áreas mais nobres da região metropolitana da capital
portuguesa, tive a oportunidade de conhecer o Vox Laci, um projeto dedicado ao
canto coral, coordenado pelo meu anfitrião e que está em funcionamento há
muitos anos.
Fui
convidado para uma maratona de ensaios com o coro infantil, o jovem, o
comunitário e o de câmara. Ouvi-os, apresentei minhas obras e juntos cantamos Movimentando, O bercinho de Jesus e Na
manjedoura. Depois, a surpresa: um arranjo bem simples de uma canção
tradicional portuguesa, Alecrim, com
arranjo de Gabriel Levy. A ideia era transitar numa pista de mão dupla,
ensinando e aprendendo, cantando e ouvindo o repertório daqui e dalhures.
Sorrimos muito, descobrindo nossas comunalidades e especificidades, tanto as
linguísticas quanto as musicais. Enquanto na minha concepção a peça deveria ser
cantada lentamente, por conta do jogo contrapontístico e da harmonia, para os
nativos tratava-se de uma dança campesina, festiva, alegre. Como se diz
informalmente nas terras lusitanas, a experiência foi brutal. Superamos nossas
dicotomias e vimos florescer, gradualmente e de forma espontânea, a música, a
amizade e os novos projetos, tal qual o alecrim dourado, que nasce no campo sem
ser semeado.
Vladimir
Silva (silvladimir@gmail.com)
Um comentário:
Meu amigo Vladimir, teu texto é tão descritivo que fui vendo todas as imagens e, por conhecer você e Myguel, me vi andando junto dos dois novamente como fizemos em Barcelona.
Fico feliz ao saber que os apresentei e mais ainda em contemplar o sucesso dos que tenho tanta estima e admiração.
Um grande abraço meu amigo!
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