Tocar ou cantar em grupo é
uma tarefa desafiadora, pois, além de interpretar o repertório, executando-o no
tempo, afinado e com técnica, é preciso observar o outro, interagindo, ao mesmo
tempo, de forma autônoma e interdependente. Para ler o que há por trás de cada
olhar e movimento, um grupo necessita ensaiar de forma consistente por um
período considerável de tempo. Muitas vezes, as informações são sutis e
passadas discretamente, suprimindo toda e qualquer necessidade de verbalização.
Mas esse conhecimento só brota com a intimidade, que, por sua vez, é fruto de
uma convivência saudável e pautada no respeito e na confiança.
Como regentes, desenvolvemos
um cabedal de gestos com o qual nossos coros, bandas e orquestras se
familiarizam. Muito embora pretensamente universais, eles carregam elementos idiossincráticos,
com os quais chamamos a atenção para pontos específicos, dentre os quais a
sonoridade, o fraseado, a precisão rítmica, os formatos das vogais, as
passagens mais complexas. O olhar fixo nas mãos, o vai-e-vem do tronco e a forma como nos
dirigimos para um determinado naipe falam sobre as verdades construídas ao
longo de várias horas de ensaio. Quanto mais conseguimos ler as entrelinhas,
captando, assim, o não-dito, mais diligente e carregada de sentido será a nossa
performance. Quando há correspondência mútua, aí, então, a fruição estética se
torna mais intensa, atingindo também o público, que reage proporcionalmente ao
grau de envolvimento e cumplicidade que demonstramos no palco.
No documentário Sob o Céu de Zabé (veja o vídeo),
produzido por Márcia Paraíso, em 2014, e que trata da vida e obra de Isabel
Marques da Silva (1924-2017), mais conhecida como Zabé da Loca, uma passagem chama a
atenção. Pitó, que integrava o terno-de-zabumba dessa famosa
agricultora-musicista que viveu no Cariri Oriental paraibano, dá um depoimento singular,
no qual descreve suas experiências e diz que “a música é uma entremelagem
de juntamento.” Analisando a sua fala, nota-se que ao usar o vocábulo entremelagem, provavelmente uma corruptela do verbo
francês entrêmeler, ele reitera o
sentido de entrelaçamento que as práticas de conjunto, tanto instrumentais
quanto vocais, evocam, convidando-nos também a refletir sobre a complexa relação
que se estabelece entre o indivíduo e
o grupo nestas e em outras instâncias do saber/fazer musical.
O emblemático discurso do percussionista revela a força da construção coletiva e reforça a crença de que para tocar
e cantar com outras pessoas é preciso observar muito mais que as frequências,
as durações e suas respectivas articulações e variações de intensidade. Sem diálogo
e interação não há conjunto. Por isso, Pitó, de forma sábia e graciosa, é enfático
ao comparar um grupo musical a um leirão de coentro dentro de um balaio num dia
de feira. Nos dois contextos, “se não se amarrar, não vende!”
Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)
Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)
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