Viajei pelo Nordeste do Brasil, aproveitando as férias com a família. Como de costume, calculei distâncias, estimei tempo e gastos. Recorri ao GPS disponível no celular, pois com ele seria possível seguir sem correr riscos de perder a meta almejada. Parti pelo interior da Paraíba em direção ao litoral cearense, andando por estradas silenciosas, encantado com a dança das pequenas borboletas amarelo-esverdeadas que cruzavam o meu caminho. Na divisa com o Rio Grande do Norte, o celular perdeu a conexão, alterando a rota do mapa, me levando à Santa Cruz, onde, no alto do Monte Carmelo, ergueram, recentemente, uma portentosa imagem de Santa Rita de Cássia.
Estava cem quilômetros distante daquilo que seria o caminho ideal. Para retomar a direção, haveria, portanto, de rever o itinerário, redefinir as estratégias. Enquanto regressava, comecei a pensar no que ocorrera, fazendo um paralelo com a nossa atividade como regentes. Nós planejamos o ensaio coral com o intuito de solucionar problemas rítmicos, melódicos, harmônicos e vocais, favorecendo a fluência musical. No entanto, mesmo estando tecnicamente preparados, continuamos reféns dos caprichos do acaso. De vez em quando, ao longo de um concerto, somos surpreendidos com desafinações, mudanças na duração e articulação das notas, pequenos atropelos antes nunca imaginados, provocados por fatores desconhecidos e que estão além do nosso domínio. Quem, por exemplo, nunca esqueceu uma entrada/corte ou se perdeu diante da partitura e, por este motivo, viu-se obrigado a adotar, como diria o professor Angelo Dias, um gestual místico, incompreensível, impressionante? Certamente, todo mundo já passou por alguma situação similar.
Há algum tempo, durante uma apresentação, o iluminador aleatoriamente acendeu um foco de luz numa intensidade diferente daquela que havíamos estabelecido no ensaio, cegando-me temporariamente. Quando mudei a direção do olhar, tentando acompanhar a partitura, não conseguia enxergar, o que quase prejudicou a atuação do conjunto. Neste momento em que a adrenalina faz o coração bater mais rápido, o mundo congela, os segundos transcorrem como uma eternidade, o prazer transforma-se em dor. Deste modo, antes das apresentações, sempre lembro aos meus alunos que, diante do inesperado, o melhor é manter o controle, respirar, conservar-se atento.
Ali, no calor escaldante do agreste potiguar, perto da santa das causas impossíveis, entrevi o real: no palco e na vida, aquilo que é planejado, por mais elaborado e consistente que seja, cede diante do imprevisível, que, como assinalaram Toquinho e Vinicius, sem pedir licença muda a nossa vida e depois convida a rir ou chorar. Desconfiado, achei melhor desligar o celular. Segui tranquilo, ouvindo o violonista Nonato Luiz. Quando necessário, parava e, sorrindo, perguntava aos moradores dos vilarejos, que conhecem e vivem na região, qual o melhor caminho a seguir.
Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)
5 comentários:
Vlads, o filósofo das paragens do mandacarú...
É isso mesmo, amigo, as forças meta-psíquicas e aleatórias muitas vezes conjugam-se para deitar por terra nossas bem planejadas atividades. Aí, entra em cena um fator primordial na regência e na vida: a capacidade de adaptação. Se a bruxa está solta, respeitemo-la, sim, mas exorcisemo-la o melhor que pudermos. Até o GPS musical pegar de novo... Abraço. Angelo Dias.
O coração do homem pode fazer planos, mas a resposta certa dos lábios vem do Senhor. Pv 16.1
A vida aplicada à arte: esse paradoxo sempre nos mostra que a vida imita a arte(redundancia filosófica)
É a vida...a nossa vida! Planejar a gente planeja, mas se nao tivermos flexibilidade na vida, jogo de cintura...e HUMOR...ah, menino!! A dor vai ser mais forte e crônica...entao...sigamos equilibrados, não é?
Adorei o texto :-)
Belo texto, Vladimir. Aproveito a oportunidade para manifestar o quão bom foi ter tocado sob sua direção no dia 31 de dezembro passado, na missa dos 60 anos do Mosteiro de Santa Clara, bem como a minha gratidão pela calorosa recepção.
Um grande abraço.
Jussival
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