sexta-feira, 30 de abril de 2010

Janequin e Marot

A relação entre música e texto sempre teve um papel fundamental dentro do processo criativo. Os compositores seiscentistas exploraram os aspectos expressivos e a potencialidade do texto para representar e suscitar emoções e sentimentos. Tais princípios foram aplicados a diversas formas de composição, incluindo a chanson.

A obra de Clément Janequin (1485-1558) é extensa e quase totalmente dedicada à composição de chansons. Ele escreveu obras sacras e seculares, ricas em onomatopeias e simbolismo musical. Canções como La guerre, Le chant des oyseaux, Le cris de Paris, Le caquet des femmes e La chasse são bons exemplos daquilo que retoricamente se denomina hypotypose, isto é, música para ser vista. Clément Marot (1496-1544) escreveu rondós e canções, destacando-se por sua poesia satírica. Marot debocha da tradição, das práticas sexuais, das mulheres e dos homens traídos usando formas fixas, rondós, epigramas e blasons. Estudos indicam que ele teve mais de trezentos poemas musicados por cinquenta compositores diferentes, dentre os quais Clément Janequin.

Da parceria entre Janequin e Marot nasceram obras singulares da literatura coral, tais como L’espoux a la première nuict, Martin menoit son porceau, Du beau tétin e Ung jour Robin, todas com forte apelo erótico. É interessante notar como a poesia narrativa contribuiu para a definição da canção polifônico-descritiva seiscentista e, mais particularmente, para a definição do estilo de Janequin. Em Martin menoit son porceau, por exemplo, o perfil melódico-rítmico, os contrastes na textura, a mudança tímbrica e as passagens declamatórias estão diretamente associadas ao texto, pontuando a fala das personagens, realçando aspectos semânticos importantes. O poema, com tradução de Eustáquio Rangel, apresenta-se assim: “Martin levava seu porco ao mercado com Alix, que lhe suplicava a plenos pulmões para que ele a possuísse. Estavam um sobre o outro, e Martin perguntou-lhe: ‘Mas quem ficará com nosso porco? – Quem?, perguntou Alix. Há uma solução!’ Enquanto o porco estava com as pernas amarradas, Martin abriu ostentosamente a braguilha. O porco assustou-se, e Alix gritou: ‘Fecha, Martin, nosso porco está me puxando!”

Janequin é considerado por muitos historiadores o grande nome da chanson parisienne. Sua música secular é satírica, erótica, carnavalesca, marcada pelo riso, “que dessacraliza e relativiza as coisas sérias, as verdades estabelecidas, e que é dirigido aos poderosos, ao que é considerado superior.” (José Luiz Fiorin, Introdução ao pensamento de Bakhtin, São Paulo: Ática, 2009) Janequin contribuiu para o estabelecimento de uma nova práxis composicional, optando pelo experimentalismo, pela construção de novas formas, pela instauração de um novo discurso. A (re) inserção destas obras emblemáticas em nossos repertórios exigirá dos intérpretes, além do apurado domínio técnico, musical e vocal, uma escuta mais atenta à filosofia geral do Humanismo e da vida.

Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)

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