Minha avó materna, Maria Luiza, era conhecida como Dona Nuca. Morava no bairro do São José, na Rua das Imbiras. Era alegre e gostava de conversar. Sempre que estava cozinhando ou passando roupas, cantarolava fragmentos de canções com sua voz suave e aguda. Aos sábados, assistia ao programa Almoço com as estrelas, apresentado por Ayrton e Lolita Rodrigues, na extinta TV Tupi. Conhecia todas as músicas e opinava sobre o desempenho dos intérpretes. Era categórica: esse é bom; este, não. Quando reunia os filhos, meus tios e tias ficavam na cozinha, ao redor da mesa, comendo, bebendo, sorrindo e discutindo sobre os mais variados temas. Ela era a mediadora. Primos e primas brincavam e dançavam embalados pelos sucessos que tocavam na velha vitrola da sala. Dona Nuca sempre vinha dançar conosco. A música nos unificava.
Minha avó era devota de Nossa Senhora, razão pela qual rezava o terço durante o mês de maio. Ao concluir a trezena, organizava uma procissão para lembrar a aparição de Fátima. Era ela quem preparava tudo. Passava o dia limpando e enfeitando a casa, colocando vasos e flores no altar, coberto com uma toalha branca de renda. À noite, a casa ficava cheia, repleta de familiares e vizinhos. Rezávamos o terço e saíamos caminhando em procissão, cantando vários hinos marianos, muitos dos quais, tenho certeza, jamais esquecerei. Três crianças representavam os pastores de Portugal. O cortejo era grande e as velas, nas lanternas artesanais que ela confeccionava, iluminavam a noite estrelada de maio. Ao término, recebíamos pipocas, doces e outras guloseimas, um justo prêmio pela missão cumprida.
No mês de junho, época das grandes festas, minha avó decorava a rua com bandeirolas e balões. Os pequenos fogos de artifício exerciam grande fascínio sobre todos nós. Na noite de São João, acendíamos as fogueiras e dançávamos ao som da sanfona de Seu Lula. Pamonha, canjica, bolo de milho e tantas outras delícias nos aqueciam na Serra naquelas noites frias. Anos mais tarde, quando institucionalizaram o Maior São João do Mundo e construíram o Parque do Povo, minha avó parou de realizar festas em sua casa, preferindo ver os shows e espetáculos que eram apresentados naquela área de lazer.
Dona Nuca lutou contra uma doença incurável. Definhou gradualmente sem perder, no entanto, a altivez, a força, a graça, a música. Uma semana antes de partir, disse que recebera a visita de Nossa Senhora, que, em sonho, havia anunciado que era chegado o momento. Neste dia, cantou um dos seus hinos prediletos e falou pela última vez. No Dia Internacional da Mulher, retirou-se serenamente. Na mesma noite, subi ao palco para uma apresentação. Antes de começar, fechei os olhos e silenciosamente dediquei-lhe aquele concerto, agradecendo-lhe por ter me ensinado, com simplicidade, a alegria e os prazeres da vida e da música.
Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)
4 comentários:
Vladimir
De todos os textos que li em seu blog o que mais me agradou foi este, de Dona Nuca. Não que deixe de concordar com todos os outros... como você sabe, sou um dos mais assumidos representantes da era e mesmo do estilo vladimiriano de se pensar e fazer música.
Mas nas palavras que escreveu sobre sua avó, aflorou (com a clareza e a objetividade de sempre) a porção não-técnica da matéria prima necessária a todo ser humano, mas, de maneira especial, aos artistas: a sensibilidade.
Parabéns a você por ter tido uma avó assim!Congratulações a Dona Nuca por ter tido um neto assim!
Posso até imaginar a simpática velhinha confortavelmente sentada em sua nuvenzinha branco-acinzentada, conferindo seu blog no laptop de Santa Cecília (ou no de J. S. Bach, por exemplo) e chamando a Fatinha (no céu o grau de intimidade é outro) para dar uma olhada em seu texto...
E que você, caro amigo, sempre faça uso da coragem e do vigor com os quais rege seus corais naquela mesma luta que foi a de sua avó até o fim!
Afinal de contas, expectativa do reencontro com aqueles que sempre amamos é uma das mais belas motivações para buscarmos, nós também, as coisas do alto.
Sempre com admiração
João VAlter
Olá meu primo padrinho.
gostei muito de ler como descreveu vovó nuca,e a cada palavra lida, a lembrança de minha vó, sempre presente e que tanto amei, hoje guardo na lembrança todos seus ensinamentos e consigo ver traços de sua personalidade em meu pai e que também herdei e que sem dulvida nenhuma só me fez crescer na vida.
ao ler seu texto fiquei emocionado
parabéns ..
abração.
Estêvão Rafael
Acabei de ler seu maravilhoso texto, que me levou a sentir ate o cheiro das comidas que ela preparava e o corre corre de primos que ficava na cozinha, eu particularmente querendo que o loro falasse sem parar (rs)e esperando a hora de degustar o maravilhoso pudim feito por tia Luizinha (o melhor de toda mnha vida!!).
Parabéns pelo texto, e obrigado por ter me feito relembrar épocas maravilhosas!!!
Beijos,
Trycia Andrezza.
Apesar de não me lembrar de todas essas histórias, foi muito delicioso escutar você descrever nossa querida AVÓ... A parte que me recordo bem era do dim-dim dela, dos fogos que ela vendia e de sua fogueira que até hoje meu pai mantém a tradição da família. E acho bastante importante reviver tudo que ela deixou de especial para nós e para outros que viram que foi a rigidez com bastante vontade de ser feliz...
Borges eu sou sim!
Abraços...
Arthur Francisco Emanuel BORGES Pereira
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