sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Ave Maria da eleição

Encontrei em meu acervo as Duas canções irreverentes, para voz e piano, do professor José Alberto Kaplan (1935-2009). Corrijam-me, se eu estiver errado, mas acredito que a Ave Maria e O casamento foram escritas para um concurso de composição da USP, na década de setenta, e que, desde aquela época, não têm sido interpretadas frequentemente. A versão que achei era uma cópia do manuscrito, razão pela qual fiz uma nova edição, para soprano ou tenor, um tom acima do original. Além de incluí-las nos meus recitais, estou desenvolvendo um estudo analítico, que será publicado brevemente numa revista especializada.

Ave Maria é uma obra intertextual, tanto sob a perspectiva literária quanto musical. O texto, originalmente intitulado Ave Maria da eleição, é do poeta Leandro Gomes de Barros (1865-1918), da cidade de Pombal, alto sertão paraibano. O poema tem sete quadras e trata do processo eleitoral num município do interior, no qual os partidos envolvidos recorrem aos mais variados métodos para ganhar o pleito, incluindo a compra de votos e a coerção. O poeta cita os versos da conhecida oração mariana para concluir cada uma das sete quadras, conforme podemos ver nos fragmentos em destaque: No dia da eleição / O povo todo corria / Gritava a oposição / – Ave Maria! Viam-se grupos de gente / Vendendo votos na praça / E a urna dos governistas / Cheia de graça. Uns a outros perguntavam: / — O senhor vota conosco? / — Um chaleira respondeu: / — Este O Senhor é convosco. Eu via duas panelas / Com miúdos de dez bois / Cumprimentei-a, dizendo: / Bendita sois. Os eleitores com medo / Das espadas dos alferes / Chegavam a se esconderem / Entre as mulheres. Os candidatos andavam / Com um ameaço bruto / Pois um voto para eles / É bendito fruto. Um mesário do Governo / Pegava a urna contente / E dizia — Eu me gloreio / Do vosso ventre!

Kaplan harmoniza fragmentos de uma Ave Maria medieval para ilustrar as passagens que fazem referência à oração inserida no poema. A atividade rítmica nestas seções é moderada, livre; nas outras, é intensa, dramática. A instabilidade harmônica é marcante em toda a obra, acentuando o conflito textual. Sob a perspectiva melódica, o emprego dos modos mixolídio e lídio, assim como a combinação dos dois modos, evocam o aroma do Nordeste, influência que o mestre revelou ter absorvido nas visitas que fez à feira de Campina Grande, onde ouviu os cantadores e repentistas pela primeira vez.

Ave Maria é um bom exemplo do uso dos procedimentos intertextuais na música vocal de José Alberto Kaplan. É, também, uma amostra do seu aguçado senso de humor e irreverência, que nos convida à reflexão crítica, atitude indispensável para o processo de amadurecimento político da nossa sociedade, sobretudo às vésperas – Ave, Maria! – de mais uma eleição.

Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)

Um comentário:

Anônimo disse...

Muito interessante, muito criativo!
Parabéns pelo trabalho!
Dayana

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